sábado, 9 de março de 2024

“Viver é uma arte. E seu roteiro deve ser escrito pela sabedoria e pelo bom senso”. Dr. José Reginaldo de Melo Paes (medico, poeta, acadêmico alagoano)


 

Dr. José Reginaldo de Melo Paes (medico, poeta, acadêmico alagoano)

“Viver é uma arte. E seu roteiro deve ser escrito pela sabedoria e pelo bom senso”.


https://www.youtube.com/watch?v=lXVgNT-jX1Q
 

Os poetas cidade de Maceió – o poeta do meu bairro.

Assim como os rios nascem e vão juntos para o mar, também em noites de lua, reunidos em uma rua, os poetas veem a cantar. No encanto da rima, produz tão bela obra prima, que enfeitiça o luar. Eu, entre esses poetas existe grande amizade, pois trazem dentro do peito uma imensa saudade. Saudade que é abrigo do velho amor do passado. Amor jamais olvidado que nos guarda o consolo. Mas  eis a grande questão, viver com essa paixão será prêmio ou castigo? Tu que eis prateada pela lua. Tu que eis tão dourada pelo sol. Tu que tens as cores do arredor, sempre levo a imagem tua em minha alma. Ao lembrar dos teus bairros coloridos, recordo dos meus amores mais queridos. As mais belas loirinhas e morenas. Mulheres divinais, lindas verbenas. Amo a tua lua beijando o mar e teus coqueirais a luz do luar. Eu nunca te esquecerei Maceió. E amanhã quando nada mais restar deixe-me venturoso aqui morar, para que jamais eu me sinta só. Oh poeta do meu bairro, tu que chora a saudade dos amores vividos, da imensa dor nos seus olhos  sentidos e o que restou dos sonhos de outrora. Oh, poeta do meu bairro que chora nas longas noites de luar brilhante, seu poema e como um diamante com lindas quadras que a noite devora. Oh poeta por que tão grande dor? Quando o passado vai longe e distante a gente esquece e esmaece a cor. Nenhum conselho, porém, eu lhe dou. Porque sou assim também, como eis tão sentimental quanto eu sou.

sábado, 22 de julho de 2023

FUTEBOL, PAIXÃO NACIONAL? Gabriel Moraes Palmeira Chaves (GMPC), Miguel de Oliveira Chaves ( Miguesley) e Pedro Edson dos Santos Alves.

 

FUTEBOL, PAIXÃO NACIONAL!?

Por: Gabriel Moraes Palmeira Chaves (GMPC), Miguel de Oliveira Chaves ( Miguesley) Pedro Edson dos Santos Alves.


O presente texto, nasceu da brincadeira entre primos - Eu, Gabriel Moraes Palmeira Chaves (11 anos) , Miguel de Oliveira Chaves (12 anos) e o Pedro Edson dos Santos Alves (14 anos) em Maceió, junho de 2023 - quando sem perceber perguntávamos: Como o futebol nasceu, cresceu e se tornou o esporte paixão nacional? Chegamos a escalar um time perfeito, da seleção brasileira, de todas as épocas.

Pedro lembrou que passou a gostar de jogar futebol aos seis anos de idade, na praça, perto de sua casa, com seu Pai. Considera que é uma higiene mental, exercício físico, aprendizado e meio de fazer amigos e amigas.

Em nossas conversas, Pedro e Miguel,  lembraram de todas as dificuldades de se profissionalizar-se no futebol. Disseram que é um ambiente muito competitivo, onde nem sempre se obtém apoio em casa. Falaram que existem muitas brigas dentro e fora do campo. Existem “escolinhas caça niqueis” de faz de conta onde existem pouco espirito de equipe. Muita concorrência acirrada, devido ao esporte ser extremamente popular em todo o mundo, e há milhões de jovens talentos buscando uma carreira profissional. A concorrência é intensa, o que torna difícil se destacar entre tantos jogadores talentosos. Muita exigência física e mental

para se tornar um jogador de alto nível. Os treinamentos intensos, as longas horas de prática e as exigências das competições podem ser extremamente desgastantes. As lesões são uma realidade e podem ser um grande obstáculo. Uma lesão grave pode significar meses ou até mesmo anos, o que pode afetar negativamente o desenvolvimento da carreira. As questões financeiras, o futebol de alto nível muitas vezes exige investimentos significativos em equipamentos, treinamentos especializados, viagens para torneios e outros custos relacionados à carreira. Nem todas as famílias têm recursos para apoiar essas necessidades. Muita pressão psicológica e rejeição. Durante o processo de seleção para times de base ou ao tentar entrar em clubes profissionais, é comum enfrentar rejeição. Lidas com o "não" pode ser emocionalmente desafiador, especialmente quando se investiu tanto tempo e esforço no sonho.

O Tio Carlos (Cau) diz que o ideal seria poder  ter balanceamento de estudos e o futebol. Para muitos jovens jogadores, conciliar o futebol com a educação é um desafio. Enquanto buscam o aprimoramento esportivo, ainda é importante manter o rendimento escolar, pois a carreira futebolística pode não se concretizar e a educação é fundamental. Como um bom advogado Tio Cau, lembra das questões contratuais. Quando se chega a um nível mais avançado, lidar com questões contratuais, agentes esportivos e patrocinadores pode ser complexo, principalmente para jovens jogadores e suas famílias que talvez não tenham experiência nesse campo. Podendo serem roubados. Conversou ainda sobre a adaptação a diferentes culturas e países. Jogadores que buscam carreiras internacionais podem enfrentar desafios de adaptação a diferentes culturas, idiomas e estilos de jogo.  Diz ainda que apesar dessas dificuldades, é importante lembrar que muitos jogadores profissionais bem-sucedidos superaram esses obstáculos com determinação, paixão e apoio adequado. Um suporte sólido da família, treinadores competentes e uma mentalidade resiliente são fatores que podem ajudar a tornar o sonho de se profissionalizar no futebol em realidade.

Não lembro ao certo quando passei a gostar de jogar. Lembro apenas, do Tio/avo Mundinho, flamenguista, do Tio Cau (Carlos Henrique Palmeira Chaves), alguns primos mais próximos de Aracaju, ou por influencia primos/irmãos como Miguel. Nem cito aqui, quantas quedas, pisões e machucados recebi e tenho dado. 

Meu Pai que é Historiador (Jefferson Murilo Palmeira  Chaves) não gosta de futebol. Fala o mundo do esporte é perverso. Que prefere Neymar, calado e jogando do que agente político, que defende apenas seus interesses e patrimônios. Que ele é um jogador que não tem consciência social. Que vem da pobreza, como milhares de meninos que tiveram seus direitos constitucionais roubados. Fala em uma “ilusão da bola” que leva muitos a não valorizam os estudos. Acreditam na “taba de salvação” do enriquecimento rápido - de serem bilionários do dia para noite – com o Futebol. Assim, dizem erradamente que “estudo não se vai a lugar nenhum. Mas a bola sim”. Seja de outdoor ambulante, repleto de marcas que rendem, muito dinheiros, roupas caras, carros, aviões, helicópteros,  meninas bonitas e mansões em cada lugar do mundo, começa ostentar. Uma vida fácil e de recompensas ilimitadas.  Nem todos são “Neymar, Gabriel Jesus” entre outros esses não retratam a situação real do trabalhador da bola no Brasil. A realidade é de desemprego, dupla jornada de trabalho, baixos salários. O atleta tem a média salarial do trabalhador brasileiro, com um agravante: carreira mais curta. Nem sequer consegue se aposentar. Com 30, 35 anos, olha para trás e não tem mais carreira e ainda tem um longo tempo de contribuição pela frente para a aposentadoria.

Se para uns o futebol é visto como lazer, religião, paixão e até mesmo entretenimento, para alguns outros o esporte é apenas uma ferramenta política, mina de ouro, forma de enriquecimento ilícito e fachada para cometer crimes. Não são poucos os casos de corrupção e crimes que acontecem dentro de instituições ligadas ao futebol, que vão desde as menores, como é o caso de federações estaduais, até as maiores cúpulas futebolísticas, por exemplo, CONMEBOL, UEFA e FIFA.

O meu Pai chegou a citar também uma expressão da “Pátria de chuteiras” de um tal Nelson Rodrigues. Nascida na Copa do mundo de 1970 – onde um tal, de regime militar, aniquilou uma geração inteira (1964-1985). Mas,   surfou, na onda da copa do mundo, na força desta expressão a seleção canarinho. Fez uma campanha, de lavagem cerebral, que buscava unir o Brasil em torno da seleção de futebol. Acha que o espetáculo da bola, é um produto importante da sociedade de consumo de massa. Nem precisa dizer, comentar ou mencionar que nasceu Inglaterra no século 19. Nem  muito menos que faz parte do pacote  “civilizador” ocidental inglês. 

Papai fala que Eu, Miguel e Pedro somos muito novos e inocentes e que vivemos no “NeymarVerso”.  



Só sei de uma coisa. Uau, jogar futebol é simplesmente incrível! É o meu esporte favorito e me enche de alegria toda vez que jogo. A alegria que sinto ao correr, chutar e driblar a bola é ótima. Nem sei descrever, sinto uma sensação mágica de liberdade. Não há nada mais emocionante do que fazer um gol, ver a bola balançar a rede e todos os meus amigos comemorando comigo. A felicidade que isso traz é única! Quando jogamos, eu Miguel, Pedro, Tio Cau e os  meus amigos, torna tudo ainda mais especial. Nós nos apoiamos, trabalhamos juntos em equipe e celebramos nossas vitórias juntos. E mesmo quando perdemos, continuamos unidos e aprendemos com os nossos erros para melhorar.

O futebol me ensinou valiosas lições, como persistência, disciplina e respeito. A cada treino e partida, aprendo algo novo, seja sobre o esporte, sobre mim mesmo ou sobre como ser um bom companheiro de equipe.

Outra coisa maravilhosa é a sensação de superação. Às vezes, um desafio pode parecer difícil, mas quando eu me esforço e consigo superá-lo, é como se eu pudesse conquistar o mundo. Isso me enche de orgulho e motivação para continuar melhorando.

Quando jogo futebol, esqueço completamente dos problemas e preocupações do dia a dia. Sinto-me leve, feliz e cheio de energia. É uma paixão que aquece meu coração e me faz querer sempre estar envolvido nesse esporte tão maravilhoso.

No final de uma partida, mesmo se eu estiver exausto, o sentimento de satisfação é imenso. Olho para trás e vejo todas as jogadas, os momentos divertidos e os desafios superados, e é como se eu estivesse vivendo um sonho.

Enfim, o prazer de jogar futebol é indescritível. É uma paixão que me faz sentir vivo, conectado com os outros e feliz. Mal posso esperar para crescer, continuar jogando e quem sabe, um dia, realizar meu sonho de ser um jogador profissional. Até lá, vou aproveitar cada momento, com toda a energia e amor que esse esporte me proporciona.

 

Esqueci de dizer:  Vou ver a copa do mundo de futebol feminino de 2023!



 Maceió, junho de 2023- tempo de férias. 

 

domingo, 12 de fevereiro de 2023

Luiz Sávio de Almeida não morreu. Se encantou/imortalizou!

 AO METRE COM CARINHO!


Quem é / foi /será o Luiz Sávio de Almeida (1942-2023)? Para mim, não foi apenas o maior antropólogo, sociólogo, cientista político, dramaturgo e historiador do Nordeste brasileiro. Nem apenas o mais notável Secretário de Estadual de Educação (16/03/1971 – 02/03/1972). Para mim, além de um maravilhoso esposo (de Myriam Almeida), Pai (6 filhos) e o avó (de 09 netos) ele é e será sempre um referencial. Me ensinou a não me refugiar na morfina moral dos livros, teses, teóricos e conceitos. Me ensinou que é tolice fazer as coisas do mesmo modo e esperar resultados diferentes (em especial, seu olhar para a Educação pública Alagoana).
Sávio de Almeida não morreu. Se encantou/imortalizou! Nos cantos dos pássaros, cigarras, nos peixes na brisa do mar, no quente/frio do ar, no orvalho da noite. Em todas as sinfonias harmônicas das geografias além das Alagoas. Ele está presente no chão da terra, na cultura popular. Dos gritos de guerra aos louvores dos nossos invisíveis excluídos das ruas praças, campos, ambientes urbanos ou rurais. Dos negros, dos povos indígenas, dos camponeses e todas as vidas que pulsam por dignidade.
Será sempre o mentor espiritual de todos os que buscam justiça e são perseguidos em suas opções sexuais, religiosas, por gênero. Dos sem-terra, sem comida, sem alhos e sem bugalhos.
Dizem nas salas/escolas/universidades e aulas da vida, que ser “sofredor” /educador credencia ao acesso livre ao céu/paraíso (sem parada burocrática ao purgatório). O céu ganhou mais um professor anjo, que vai rogar por nós pecadores. Investigará o céu e todos os mistérios do além vida.
Pode-se dizer com certeza: Sempre será um dos mais proeminentes intelectuais de Alagoas que influenciou e continuará inspirando batalhas. Sou com todo orgulho um dos discípulos desgarrados (pós-graduação), pertencente a uma geração sortuda formada por Sávio de Almeida.
Quantas vezes ficamos admirados em sala de aula ouvindo os seus feitos extraordinários, suas descrições com seres ainda mais extraordinárias (entes, reais e imaginários, como as cotias, onças, caititus, caiporas e os lobisomens). 
Meu muito obrigado! Com o Senhor Professor apreendi a perceber, muito além do imaginário e da linguagem. Não apenas as populações rurais da Zona da Mata do nosso estado. Ler/perceber o simbolismo e as metáforas sobre a vida/cotidiano e a morte. Quem ensina/escreve nunca morre, vive, em cada aluno. Obrigado Mestre!

Jefferson Murilo Palmeira Chaves, em 11 de fevereiro de 2023.

domingo, 5 de fevereiro de 2023

Primeiros passos da formação de Alagoas (Dirceu Lindoso)

 Gazeta de Alagoas- Caderno Saber


07/05/2005

De como se fez a sociedade alagoana a partir dos conflitos e contradições dos primeiros tempos
por DIRCEU LINDOSO


O medievalista russo Aaron J. Gourevitch, em sua obra clássica Kategorii Srednivekovoj Kul"tury (Moscou, l972), considera toda cultura, qualquer que seja a época, como um sistema semiótico universal. E, desse modo, acha que a pobreza na Idade Média (medium aevum) foi um fenômeno característico da época feudal. A categoria da pobreza era interpretada, nesse período, com referência à divisão sociojurídica da sociedade. O que a consciência daquela época chamava de pobres eram pessoas comuns, os não-privilegiados, e não via nenhuma inconseqüência lógica na oposição nobres/pobres, porque essas noções não eram estritamente econômicas, mas estritamente concernentes à propriedade. Desse modo, falava-se dos pobres de Cristo - os pauperes Christi - que eram homens que renunciavam aos bens do mundo para atingir o reino de Deus.A linguagem das categorias econômicas não tinha, portanto, autonomia e representava um dialeto de uma espécie de metalinguagem da cultura. As noções não se dissociavam, eram econômicas, teológicas e jurídicas, conjuntamente. A linguagem dos homens da Idade Média tinha uma excepcional polivalência semântica. E escreve: "Os termos mais importantes de sua cultura são plurissignificantes e recebem do contexto um sentido particular". A pobreza é uma das categorias básicas da cultura medieval, tendo, como outras, um sentido particular.


É com essa concepção cultural da pobreza que o homem da Idade Média concebe o mundo. Essa concepção é uma das faces da nossa cultura colonial; a outra é a concepção da riqueza, sob a forma de bens e de abundância. Pobreza & Riqueza Os primeiros padres-visitadores do Santo Ofício que vieram ao Brasil Colonial constataram, na Bahia e em Pernambuco, uma sociedade que, baseada na riqueza de bens agrários e exponenciais, vivia na abundância e no luxo tutelar.Alguns historiadores póstumos vêem no fato um exagero de observação, já que essa não era uma abundância de todos os dias - mas só dos dias de festas e recepções - nem de todos os anos. Exagero ou não, ela foi registrada por observadores hábeis, a serviço da Inquisição, como o padre Fernão Cardim, constando de alguns documentos inquisitoriais.O padre Fernão Cardim registrou índios e colonos da sua época. Descreveu os índios e seus costumes, as plantas mais características, bem como os hábitos e usos dos colonos. Registrou, em seus papéis - apreendidos por piratas ingleses na viagem de retorno, e vendidos e publicados em Londres, posteriormente - com uma sinceridade quase de criança grande, os banquetes com que o receberam no Colégio da Bahia, em Recife e Olinda, e que mostravam a abundância e a riqueza patrimonial (Padre Fernão Cardim, Tratado da Terra e Gente do Brasil. Rio de Janeiro, l925). Exagero ou não, a imagem da abundância e riqueza formou-se e se contrapôs à imagem da pobreza. Daí em diante, formaram-se os arquétipos da pobreza e da riqueza. Primeiro, nas cartas jesuíticas e nos livros dos padres-visitadores; depois, na historiografia dos séculos XVII e XVIII, e nas crônicas dos cronistas flamengos que visitaram e residiram em Pernambuco, convertido num feitoria holandesa.A formação dos arquétipos da pobreza e da riqueza ocorreu quase simultaneamente. No final do século XVI, já tínhamos as duas: a dos padres-visitadores jesuítas, na Bahia; e, em Pernambuco, a formação do arquétipo da riqueza, expressa pela abundância e na vida de conforto nas casas-grandes dos engenhos de açúcar.Ao sul de PernambucoNos relatórios e cartas dos funcionários do rei, no sul de Pernambuco, formava-se a imagem da pobreza na miséria de índios aldeados e na escassez de conforto dos mucambos da região dos palmares e de matos frios. Era uma pobreza contrária à que reinara na medievalidade da Europa Ocidental, porque sua escassez se vinculava a uma concepção econômica desligada de vínculos teológicos. A medieval fora uma pobreza cultural e teológica, enquanto a que se formava no sul do antigo Pernambuco era uma pobreza estritamente econômica, com escravos negros transformados em objeto de comércio e índios trabalhando como escravos, lutando como soldados-servos, em aldeamentos controlados, e vendo destruída sua identidade tribal.A pobreza do mundo colonial do século XVII, quando os quilombos se formavam (e, a partir de 1674, o maior de todos - o dos Palmares -, destruído pelo Terço paulista, com o apoio de índios Tapuia-Kariri do sertão do Piauí) tinha um vínculo estritamente econômico, pois fora criado pelo uso do trabalho escravo de negros trazidos como cativos e aqui transformados em escravos, por moradores de engenho, a maioria composta de mulatos e sem terra. Na colônia, o mercantilismo impusera a sua marca sobre a vida colonial. A escravidão de negros cativos trazidos da África foi uma invenção mercantilista, a única maneira que os colonos ricos de Portugal encontraram para a explotação - permitam-me aqui o uso de um anglicismo - das terras do Brasil. A pobreza mucambeira ou quilombola tinha características culturais nítidas, pois era formada por uma massa de ex-sociais de transitória vida autônoma, que, quando despossuídos da condição de ex-sociais, retornavam à escravidão. Isso dura até o século XIX, quando os últimos mucambos, como o de Catucá (Recife), são destruídos ou desaparecem com a Abolição, em l888.A pobreza que aparece, no século XIX, no meio da Guerra dos Cabanos e no espaço geográfico papa-mel, ainda é mucambeira. E vai permeabilizar-se no mundo cabano alagoano-pernambucano, como um processo social de pobreza, de contraponto com a riqueza ou abundância de uma classe tutelar: a aristocracia rural.Dupla feiçãoNa formação das Alagoas, a sociedade que vai ser alagoana depois de 1817 apresenta-se com uma dupla face: a da abundância tutelar e a da pobreza social. Ambas com estrutura social e conotações econômicas. A sociedade já mercantilizada desenvolve um conteúdo econômico e esboça uma diferenciação cultural. Nela, o social prevalece sobre o cultural. Ela vai adquirindo uma autoconsciência social. Só que se especificam as ambivalências sociais, principalmente nas classes baixas; algumas delas - como a dos escravos - não chegam a ser uma classe. No máximo, um estamento, no qual as ambigüidades culturais prevalecem sobre as diferenciações econômicas. É o que descreve Tonelare sobre o mundo rural do sul de Pernambuco do século XIX - uma região rural especificamente de transição, com índios que contestam a posse da terra, com moradores que plantam de aluguel e lavradores empobrecidos. Essa região de Ipojuca, visitada pelo viajante francês, serve de exemplo a toda a região dominada pelos engenhos de açúcar.A comarca de Alagoas surge em 1774. O espaço alagoano passa 199 anos sem divisão administrativa, um espaço geográfico dominado pela abundância das águas, e daí o nome alagoas, pelas muitas que existiam de norte a sul. Só no século XVIII, depois da destruição do Quilombo dos Palmares e da ocupação flamenga de Porto Calvo, Alagoas aparece como um espaço de ocupação político-administrativa, ainda que precário. Passa a ser a comarca das Alagoas, uma divisão administrativa da capitania de Pernambuco. Os historiadores alagoanos mais antigos costumam preencher esse vazio colonial tentando localizar o descobrimento do Brasil por Cabral no litoral alagoano, desconhecendo que Diogo de Leppe descobriu o cabo de Santo Agostinho, antes de Cabral descobrir o Brasil no litoral da Bahia, e navegou pelo mar do norte de Alagoas, onde deu o bordo de retorno à Europa. Alguns meses antes de Cabral, mas que estabelecem uma precedência. Os pólos primitivos de colonizaçãoSão dois os pólos primitivos de colonização do território hoje alagoano: Penedo e Porto Calvo. O de Penedo, fundado em 1575, mais antigo e com uma orientação diferencial, pois dele surgiram a ocupação do sertão alagoano e a criação da civilização do couro [para usar a expressão célebre do historiador cearense João Capistrano de Abreu no seu livro Capítulos da História Colonial (1500-1800), um estudo clássico da nossa historiografia colonial].Porto Calvo, dez anos depois, inicia a formação dos engenhos de açúcar na zona das matas úmidas e justa-marítimas, baseada no trabalho dos negros escravos, trazidos cativos de África. Penedo, fundada como uma fortaleza de onde nasceu a cidade histórica, expandiu a colonização para o sertão, facilitada pelo rio São Francisco e pelos caminhos de gado e os trilhos de índios. Porto Calvo começou como fortaleza - que, no tempo dos holandeses, eram três, como mostra um quadro pintado por Frans Post - e ao pé da fortaleza surgiu a sociedade sob a forma de um casario e o engenho próximo do sesmeiro Christopher Linz, onde floresceram em terras cisunenses as plantações de cana e o complexo casa-grande, senzala, capela e engenho. De Penedo surgiu a conquista dos sertões alagoanos, e de Porto Calvo a sociedade tutelar dos donos de terras, de escravos e de fábricas de açúcar da futura Alagoas.Área do couroNo pólo de colonização de Penedo, gerou-se um tipo de sociedade formada de pastores, criadores de gado bovino e cavalar, construtores de currais de bois e conquistadores de sertão semi-árido, de vaqueiros-proprietários, baseada na fazenda de gado, e de vaqueiros-tangedores de rebanhos de gado. Uma sociedade de estrutura social mais simples, com o mínimo de distância social entre o vaqueiro-proprietário e o vaqueiro-tangedor, sem o uso do trabalho escravo dos negros comprados de navios negreiros. A estrutura dessa sociedade sertaneja era mínima, e os donos de currais nem sempre sabiam aonde iam os limites de suas terras, pois não havia cercados de demarcação. O gado pastava ao dará, e só nos rodeios se fazia a partilha do gado chucro, aplicando-se o ferro de marcar com as iniciais do dono ou qualquer outro símbolo. Só muito tarde as terras de pastoreio das savanas sertanejas passaram a ser demarcadas. Era uma sociedade - a do pastoreio são-franciscano - que punha como quase companheiros a vaqueirada-proprietária e a vaqueirada-tangedora. Não era visível a hierarquia da casa-grande, pelo fato de não haver escravos negros africanos e porque os índios se adaptavam a condições de servos-pastores e à vida de pastoreio. E não punham fim em sua vida nômade, pois os currais de bois andavam com a transumância dos rebanhos. A esse estilo de vida, Capistrano de Abreu chamou de "civilização do couro" e os elementos que ele define como característicos são válidos para todo o sertão, do semi-árido piauiense ao sertão do São Francisco. Em toda essa extensão, o sertão é um só, com pequenas variações que não chegam a ser uma diferença.A "civilização do couro", em Alagoas, inicia-se com a expansão da frente de colonização de Penedo, um tipo de colonização que tem por base o pastoreio em savanas semi-áridas e que não conheceu a escravidão negra, mas a servidão do índio de aldeia e de missões religiosas.Tapuias em guerraEm fins do século XVI e durante o século XVII, os índios Tapuia-Kariri uniram-se para atacar a frente dos currais de bois que invadiu o sertão, ocupando suas terras de caça. Foi a Guerra dos Bárbaros ou o Levante dos Tapuias. Os Terços paulistas e pernambucanos, por sua vez, atacaram os índios de corsos em várias frentes. O Terço paulista de Domingos Jorge Velho e Mendonça Arrais venceu os tapuias de corso do sertão do Exu, no Piauí. E só depois de terem reduzido os índios a soldados-servos, desceram para Alagoas, para o ataque à Cerca Real dos Macacos, onde é hoje União dos Palmares.Penedo teve um papel importante na Guerra dos Bárbaros. A jurisdição do capitão-mor de Penedo, segundo a carta do Rei ao Governador de Pernambuco, recaía sobre as aldeias situadas em Sergipe e Pernambuco.Assim, frei Manoel da Ressurreyção, que era do Conselho do Rei, mandava que se tirassem das aldeias cerca de 300 arcos bem armados de flecharia, e formassem os Terços de índios aldeados, para atacar os índios que lutavam contra os currais ou, como diz o texto de 1688, para enfrentar o excessivo poder dos Bárbaros, que eram os índios de corso. Foi nomeado novo capitão-mor o tenente Pedro Aranha Pacheco, morador de Penedo, que iria com esses índios socorrer, no Reino dos Guariguês, as tropas de Domingos Jorge Velho, que se achavam sem munição e gente para resistir aos ataques dos Tapuia-Kariri rebeldes.Outra patente de capitão-mor se passou a André Pinto Correa, cuja jurisdição ia de Cachoeira Grande - hoje Cachoeira de Paulo Afonso - até as últimas povoações de Carinhanha, extensão onde se localizavam as aldeias dos índios de Cajuru, do Tucuruá, de Geremoabo, de Caribes, de Kariri, dos Guaiases, dos Cuarapos, dos Tamaquiz, dos Rodelas, da Jacobina, dos Sacacarinhans e dos Papaiases, onde, diz o documento, se pode reunir "athe trezentos arcos, os mais bem armados de flecharia". Uma jurisdição ia de Penedo até Piranhas, no Baixo São Francisco; outra ia de Piranhas ao Médio São Francisco.Cana ao NorteNo pólo de colonização de Porto Calvo, gerou-se um tipo de sociedade cuja base era o trabalho escravo dos negros africanos. Os moradores eram empregados no corte de madeira de lei destinada aos estaleiros de Lisboa e da Inglaterra. Eram matas ricas em madeiras tortas para o cavername dos navios. Daí surgiu uma sociedade complexa e muito hierarquizada, de imensos latifúndios, polarizada entre a casa-grande e a senzala. O cume dessa sociedade era formado por uma aristocracia rural, que chegou ao século XIX, e foi bem estudada por Gilberto Freyre em Casa-Grande & Senzala (1933) e Sobrados e Mucambos (1936).A destruição da confederação de mocambos do Alto Porto Calvo - levada a efeito pelas tropas dos sertanistas paulistas aliados aos índios Kariris, descidos do sertão dos Gurguéias e dos altiplanos sertanejos - criou condições para a fixação e ampliação da civilização do couro. A junção dos terços paulistas com as tribos vencidas da Guerra dos Bárbaros, e a libertação de Porto Calvo do domínio holandês, possibilitaram uma grande ampliação da área da cana-de-açúcar e dos engenhos - e o crescimento de uma sociedade baseada no trabalho do negro escravo, objetivando a produção do açúcar e sua exportação. A fixação da sociedade agrária nessa área se faz através da extinção dos índios de corso nos domínios agrícolas e com a importação de escravos da áfrica para o trabalho nas plantações e nos engenhos. Pequenas vilas surgem e se fixam, assim como se estruturam portos por onde são escoados o açúcar e madeiras para a construção naval.Índios e negros nos PalmaresOs índios Tapuia-Kariri e os negros mucambeiros enfrentaram-se, pela primeira vez, na Cerca Real dos Macacos, situada na serra do Barriga. Os índios Tapuia-Kariri, depois de derrotados nos sertões do Piauí, iam como servos-soldados do Terço paulista de Domingos Jorge Velho e seu lugar-tenente Mendonça Arrais. O procurador do mestre-de-campo, Bento Sorrel Camiglio, justificava sobre esses servos-soldados: "os soldados dele são seus servos que ele adquiriu, no decurso de mais de vinte anos à própria custa de sua fazenda, com o seu trabalho, e com muito risco de sua vida" (M.M. de Freitas. Reino Negro dos Palmares. II. Rio de Janeiro, l954, p. 633). Essa tropa de índios de corso, aprisionados e transformados a uma servidão militarizada, o Terço paulista usou para o ataque e cerco do mucambo da Cerca Real dos Macacos. Os índios Tapuia-Kariri eram usados contra os negros mucambeiros numa operação de grande escala, e os mucambos palmarinos foram caindo um a um. Os negros que não foram dizimados nos ataques foram colocados outra vez no estado de escravidão, vendidos para outras regiões ou exportados como mercadoria pelos negreiros para outros portos de escravos em outros países. Não se pode ter idéia de uma matança de tantos negros, uma mercadoria cara.O que se deve pensar é que o sumiço de tantos prisioneiros deve-se ao seu transporte para outros pontos do país ou ao fato de terem sido levados como escravos para outros países da América onde a escravidão existia, como Cuba, Jamaica e Haiti.Um fato se deve notar: a empresa dos Palmares foi uma profunda operação militar para o Terço já habituado a uma operação desse tipo - o de dizimar e escravizar populações indígenas nos sertões do Piauí -, ao mesmo tempo que foi uma operação financeira de venda de negros palmarinos aprisionados. A historiografia tradicional transformou Zumbi num grande herói suicida, jogando-se do alto de um despenhadeiro, onde encontrou a morte, para não cair prisioneiro. O fato do suicídio e morte heróica de Zumbi, o último dos chefes do Quilombo dos Palmares, é um fato que parece não pode ser provado, mas que ficou na historiografia alagoana, e depois brasileira, como arquétipo ou imagem histórica. Pode-se suspeitar de uma historiografia feita por senhores de escravos, ou seus descendentes, cheios de culpas pelo arrasamento de um tipo de sociedade, que, por existir, pôs em dúvida a racionalidade da sociedade tutelar da cana-de-açúcar, que tinha por trabalhadores negros escravos de origem africana. A história do destino dos prisioneiros da guerra contra a população mucambeira dos Palmares ainda não foi escrita. Mas precisa sê-lo para que a razão da história dos negros palmarinos ganhe cientificidade e seu lugar seja resguardado na História do Brasil. Isso porque, se outro motivo não existisse, existe a razão que lhes deu Alfredo Brandão: "O negro, em Alagoas, foi um dos maiores elementos de civilização" (Os negros na História de Alagoas apud Estudos Afro-Brasileiros. Rio de Janeiro, l935).De onde Alagoas surgiuA parte menos conhecida da história de Alagoas é a colonial. Até parece que Alagoas não tinha história que justificasse seu nascimento num papel comum de despacho assinado por Dom João VI em 1817, criando a capitania de Alagoas e separando-a da capitania de Pernambuco. A fábula inventada pelo grande historiador pernambucano Pereira da Costa dá as Alagoas como uma criação áulica, durante o período do Reino Unido, como "uma gratidão" por tropas alagoanas, saídas de Porto de Pedras, terem ajudado na derrota da Revolução Pernambucana de 1817. No espaço alagoano, ocorreram duas guerras fundamentais para sua criação: a Guerra dos Bárbaros ou o Levante Tapuia, que foi uma guerra dos currais de bois contra a confederação de tribos Tapuia-Kariri de índios de corso, que com a derrota dos Tapuia-Kriri consolidou o devassamento do sertão, configurando o quadro de uma entidade política que iria surgir em 1817. A conquista do sertão, tendo como pólo Penedo, foi importante, com a criação de povoados sertanejos, para que se configurasse um quadro de conquista e ocupação de um território; assim como a guerra contra o Quilombo dos Palmares, dissipando o maior aglomerado de negros escravos fugidos que se conhece em nossa história, e aliviando o medo histórico que espantou a nossa aristocracia rural. O medo foi tanto, que Zumbi entrou na História do Brasil como herói nacional. E entrou merecidamente, pela sua consciência da liberdade. Foram esses fatos que criaram uma autoconsciência social alagoana, em que ocultamos toda a nossa consciência nacional e nossas paixões, nossos sonhos e nossos desesperos. Alagoas já se prefigurava antes de 1817. Já era pensada como um sonho político, que o mais inteligente dos Braganças concretizou. Saiba o douto historiador pernambucano que uma simples gratidão política não cria um sonho político. São os fatos da vida social, o sangue derramado das paixões, os sonhos que duram séculos, a ida e a vinda dos homens, as suas vontades e amarguras, que fazem do sonho uma verdade. Alagoas surgiu da morte de milhares de índios, que hoje vivem encurralados em suas aldeias de sertão, da morte e prisão de milhares de negros escondidos nas Cabeceiras do Porto Calvo, para que, desse genocídio, dessas paixões humanas de raças tão diferentes, surgisse Alagoas. Uma vez escrevi: Alagoas é o que se ama e dói. Alagoas não nasceu do sonho de um monarca. Nasceu da morte de milhares de índios Tapuia-Kariri, da morte de milhares de negros de etnias diversas, do trabalho de milhares de homens pobres: índios, negros, brancos e mulatos. Houve uma riqueza de poucos e uma pobreza de muitos. Esse foi o jeito que encontramos de criar Alagoas. Pois é bom que se diga: Alagoas nasceu de uma grande paixão. A paixão pela vida, a paixão pela morte. A paixão pela riqueza, a resignação pela pobreza. E, desculpe-me o orgulho do nosso antigo Pernambuco, pelas escolhas que fizemos na História. Alagoas é terra mater.

sábado, 4 de junho de 2022

Discriminação e preconceito em migração qualificada para o Brasil: restrições relatadas por estudantes na Universidade de São Paulo Cynthia Soares Carneiro

 

Discriminação e preconceito em migração qualificada para o Brasil: restrições relatadas por estudantes na Universidade de São Paulo


Discriminación preconcepto em la migración calificada para Brasil: restricciones relatadas por Estudiantes em la Universidad de São Paulo

-RESUMO:


Cynthia Soares Carneiro1

O artigo analisa resultado de pesquisa com intercambistas no campus da USP em Ribeirão Preto. Discorre sobre suas dificuldades de acesso a direitos e à integração à vida universiria. As conclusões são baseadas em seis depo imentosfornecidos por estudantes de Angola, Egito, Jamaica e Peru, que frequentaram os cursosde Medic ina, Odon tolog  c ar--maEt-a .minis tração Direito. A exposição teórico-descritiva foi suscitadapara compreens pisódios narrados em sua história de vida. A invesigação permitiu

enfi-ffcâf"éiiscrim inação nos serviçosconsulares e na Políc iFederal, além de racismo e violência em abordagensfeitas pela Polícia Mili tar no interiono campus universitário.Os relatos ainda permitiram inferique o padrão econômico dos estudantes universitários brasileiros e o racismo ornam o Brasium lugapouco araene para im igranes que buscam qual ificaçõesacadêmicase profissionais.


Palavras-chavemigração qualif icada; estudanes; migração Sul-Suldiscr iminação; racismo


RESUMEN :

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Este artículo analiza el resultado de una investigación con estudiantes de intercambio en el campus de la USP (Universidad de São Paulo) en Ribei rão Preo. Investigamos las dificultades de acceso a derechos y de in tegración a la sociedad brasilena y a la vida universitaria. Las conclusiones se basan en seitesti monios proporcionados por estudiantesde Ango la, Egipto, Jamaica y Perú, quienes asistieron a los cu rsosde Medicina, Odontología, Farmacia, Adm inis t ración y Derecho. La exposición teórico -descripiva fue recopilada por su historide vida. La investigación nos ha permitido identi ficar ldiscrim inación en los servicios consularesy en lPolida Federal, así como eracismo y la violencia en abordajes hechos por la Polid a Militar denro dei campus universitario. Los testimoniostambién han permitido deducir que el alto n ível económico de los estudiantes universitariosbrasilenosy el racismohacen que Brasilsea un luga muy poco atractivo para los inmig rantesque buscan calificaciones académicas y profesionales.

Palabras clave igración cualificada; estudiantes; migración Sur-Sur; discriminación; racismo


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Professorade DireitInternacional no curso dgraduação e mestrado da Faculdade e Direito dRibeirão Preto (FDRP/USP), ond coordena grupde p esquisa extensão universitáriGEMT(Grup o de Estu dos Migratórios e de Apoiao TrabalhadoImigrante).

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INTRODUÇÃO


A cidade de Rib eirão Preto, localizada no interio do estado de São Paulo, é conhecida como importante centro agroindustriae universitário.Destaca-se pela culturda cana-de­ açúcar e produçãode álcoocombustívedestinado ao mercado interno brasileiro. Do final do século XIX até a década de1920,a regiãoconstituiu-seem um dos pri ncipais destinos de imigrantesi talianose japoneses, contratados para trabalha na lavourade café. Na úlima década, a cidade voltou a recebertrabalhadoresimigrantes e tem, igualmente,aumentado o número de estudantes internacionaisque, nos últimos anos, buscam qualificação em universidadesbrasileiras.

O númerde intercambistasno campus da USP em Rib eirão Preto tem aumen tado em razão do credenciamento da un iversidade, no ano de 2011, ao Prog rama Estudante Convên ide Graduação e Pós-Graduação (PEC-Ge PEC-PG)do governo federal, pois passou a receber alunos provenientes da América Latina, Car ib e e África, estimulando a m igração Sul-Sul. O Acordo de Residêncido Mercosul também promove a circulação de alunos dos Estadosbeneficiários. Atualmente,eles compõem a maioria dos estrangeiros no campus de Rib eirãoPreto2

A p esquisa demonstrou que, apesar da condição de " imig rantes qualificados", os estudantes provenientes do sul hemisférico estão sujeitosàs discriminações historicamente impostas pelasleis m igrató riasbrasileiras pelas práticasdos serviçosde imigração. É o que demonstram os relatosde experiênciasjunto a Consulados e Polícia Federal brasileira. Evidenciou, igualmente, que os estudantes sofrem com o racismo estruturarasileiro, fruto de quat rocentos anos de escravidão e da significativa participação do Brasil na formação do conceito moderno de negritude e african idade(Mbembe, 2014)3,fundamental

à consolidação do sistema-mundo capitalista(Braudel,1987; Balibar y Wallerstein, 1991).

A escolha dos alunos entrevistados foi baseada na técnica da " bo lde neve ": um estudantdo projeto ou um aluno in tercambistind icou alguém do seu círculo de amizades para relatasua história. Apesade termos cerca de 218 alunos estrangeiros no campus de Ribeirão Preto, em uma estimativa de 92 da Am érica do Sul e 24 da África, o desenvolvimento do trabalho foi inib ido em razãodas restriçõesformais, estabelecidas pela Resolução 466/2012 da Com issãoNacional de Ética em Pesquisa (CONEP)(Brasil, 2012), que impediam que o Conselho de Ética em Pesquisa (CEP)se p ronunciasse sobre sua aprovação.Comopercebemos que o desenvolvimentodo projeto implicavaem riscos aos participantes,a coleta de depoimentos foi interrompida.Tairestriçõessó viriam a ser corrigidas com a edição da Resolução 510/2016da CONEP, relativaàs Normas Aplicáveis a Pesquisas em Ciências Humanas e Sociais (Brasil, 2016)que adequou o protocolo a ser

seguido nas investigaçõesque contam com a participação de sereshumanos, até então reguladopor normasvoltadasà área de saúde, aos métodos empregadospor cient istas sociais,como é o caso deste trabalho, circunscrit o na esfera do Direito e da Antropo logi a

institucional.


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PESQUISA QUALITATIVA COM SERES HUMANOS E PAPEL DO COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA


No Brasil, as pesquisas que implicam riscos às pessoas devem ser insc ritas no sistema CEP-CONEP,vinculado ao Ministé rio da Saúde. O requ isito deve ser atendido, inclusive,


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2Osdadosapresentados pela Seção Téc nica de Apoio ao Viita nte Estrangeiro do campus são relativosao mero de atendimentos. No e ntanto,os números coincidem com o número de estudantes nocampus, pois ali compa recem a cada ano para agendame nto, junto a PolíciFederal, da renovação da autoriza ção de per manênc ia. Em 201S, ano da pesquisa eram 218. Em relação àorigem42eram de Esta dos da América do S ul27da Europa, 11% da África, 9da Asia; 6da América do Norte e 5da Amér ica Central.(US P,2015, 2016).

  1. Segundo Mbembe, "a razão negra designa tanto uconj unto de d iscursos como de práticas um trabalho quotidino qucons ist iu em inventar, contar, repetir e por em circulação fór mulas textos, rituais, como o objetivode fazer acontece Negro e nquanto sujeito de raça e exterioridade selvagem, passível,a tarespeito, de desqual ificação moral e de instr umentalização prática" (Mbe mbe, 2014, p. 58).

    por pesquisadores que se util izam de metodo logiaspróprias às Ciências Sociais, cujas pesquisas importam em riscos substancialmente menores aos partic ipantes,em relação às pesquisas na área de saúde. Pelregime da Resolução 4662012, a única forma admitida para registrar a anuência do participante em colaboracom o projeto seria a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), red igido conforme os critériosalfixados (Brasil, 2012garantindo o absoluto sigilo emrelação à identidadedos participantes para protegê-los de riscosinerentesao projeto. O banco de dados com os depoimentos,já em processo de formação quando da problematizaçãoda pesquisa esua submissão ao sistema CEP-CONEP é formadapogravação em vídeos dos depoimentos, momento em que os estudantesgravam sua conco rdânciaem participar, autorizam o uso das informaçõesprestadas e das imagens obtidas para fins acadêmicos.

    A parir dos relatos de experiências vividas no Brasil, especialmente no ambiente universitário, fopossíveanalisao papedas instituiçõespúb licas brasileiras na recepção dos imigrantese identificaos obstáculos interpostos por consulados e pela Polícia Federal e Mil itadesde o pedido de admissão, a chegada do estudante ao Brasil e durante sua permanência para estudos. A pesquisa, portan to, propõe-sea setanto um instrumento

    de diagnóstico de situações violadoras de direitos, como forma de intervençãovoltada à

    defesa dos imigrantes.

    Apesar de possibilitar a defesa de seus direitos,o que nos levou a presumir a inexistência de riscos significativos aos participantes, o desenvolvimento do projeto demonstrou sua pot encialidade em provocar danos, o que limi tou seu escopo inicial. Adema is, o consentimento formafoconferido de forma diferente daquela estabelecidapela CONEP. Nesse sentido, a Resolução 5102016, estabeleceu mudanças que possibilitaram a divulgaçãode seus resultados. O que veio em boa hora, pois cientistassociais brasileiros

    evitavam submeteseus projetos à avaliação ética por conside rarem desproporcionao

    rigodo CEP em relação às pesquisas baseadas em observaçãoparticipante ou realizadas por meio de relatos de hist ória de vida, em razão do baixo risco que oferecem aos participantes,principalmente quando seu objetivo relaciona-seà garantide efetividade de direitosfundamentais e combate a discriminação e estigmatização. Consequentemente, os pesquisadores optavamposeguir, com a devida ponderação, protocolo determinado

    pelo CONEP, sem, contudo, submete projeto à Plataforma Brasil4, po is o procedimento

    poderia embaraçao desenvolvimento da pesquisa.

    Apesada Resolução5102016prever"a garantia da confidencialidade das informações, da privacidadedos participantes e da proteção de sua identidade, inclus ive do uso de sua imagem e voz" (art. 3°, Vil), o que previne e minimiza possíveiriscos,passou a admitirpossibilidade do participante manifestar sua anuência em participada pesquisa por

    outrasformas idôneas, além do TCLE e, inclusive, abrir mão do seu direito à ri vacidade,

    desde que se man ifeste de forma inequívoca nesse sentido (art. 17, IV) (BRASIL, 2016)5• Na sua vigência, optamos, então, por divulgar aspectos relevantes expostos nos depoimentos. Entretanto, optamospo mante a confidencialidade em relação ao nome e outros dados

    que possam facil itar a identi ficação dos participantes,pois avaliamos que, de fato, há riscosque devem seevitados. Mesmo assim, inferênciasrelativasà nacional idade, ao curso frequentado e ao gênero dos participantes,não excluem, de todo, a possibilidade

    de serem identificados,e, sobrisso,foram alertados pelospesquisadores.

    Após a análise circunstanciadado conteúdo das declarações restadase ao observarmos a emoção que provocavam, constatamos, igualment e, que episódios narrados são suscetíveis de criar transtornos aos estudantes em razão de sua potencial gravidade,

    especialmente quando implicam autoridades migratórias, detentoras de largo poder discricionário em relação à admissão e permanência de estrangeiros no Bra sil. Mesmo que todos os part icipantes gozem de situação regulano país e sejam detentores de qualificações especiais consideradasdesejáveis pelas normativas e programasestudantis

    brasileiros, ainda assim estão sujeitos a um alto grau de vulnerabilidade, em razão de políticas invariavelmenterestri tivas em relação aos im igrantes,o que justifica adap tar o projeto inicial aos preceitos estabelecidospelo sistema CEP-CONEP.


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  2. Plataforma Brasil é a base nacionae unficada de registrosde pesquisasenvolvendo seres humanos para todo o sistemaCEP/CONEP.Dispovel em<http: // plataformabras l.saude.gov.br/l ogn.jsf>. Acesso em: 13mar2018.

  3. Art . 17. O Registro de Consent imento Livre Esclarec ido em seus d feentes forma osdeve á conte r esclarecimentos sufic ientes sobre a pesquisa,incluindo[...garantide manutençãodo sigilda privacidade dosparticipantesda pesquisa,seja pessoa ogrupo de pessoas, durante todas as fases da pesquisa,exceo quando houver sua manifestação explícita em sentido contráriomesmo após o térmno da pesquisa" (BRASIL2016).

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    ACORDOS PARA RECEPÇÃO DE ESTUDANTES E RESTRIÇÕES AOS MIGRANTES SUL-SUL


    Os estudantes que nos concederam seus depoimen tos são originá rios de "países de desenvolv imento insuficient e" ou "países em desenvolvimento", eufemismos que ident ificam Estados que se localizam na periferia ou sem iperife ria do Sistema-Mundo Moderno, na conceituaçãoque lhes confere lmmanuel Wallersteiem sua obrModem World System {2011).

    Com exceção de N.J, que custeou integ ralmente seus estudos no Brasil, mediante um planejamen tfinanceirque envolveu três anos de trabalho extracurricu lar, feito à margem de suas obrigações acadêmicas na Faculdade de Medicinada Universidod Nocional de San Agustín, no Peru, os demais vieram em razãode prog ramasintergovernamentais ou med iante convênios inter institucionaifirmados entre universidades,como é o caso de R.R.W.eS.A.N., que, como N.J,são originá riasdo Peru.

    Os estudos de N.Jna Faculdadede Medicinade Ribeirão Preto só puderam ser viabilizados em razão do Acordo de Residência do MERCOSUL e após ter sido info rmado sobre seus requisitos pe lEscritório de Apoio o Estudantes Estrangeiros do compus de Ribeirão Preto, poisapesar de seus esforços, ao solicitar o visto de estudante junto aoConsulado brasileiro no Peru, esteve a ponto de desistir do intercâmbioem razão da cobrança de um seguro­ saúde em valoresincompatíveiscom suas economias,sem o qual, foi-lhe informado, não haveria a concessão do visto.N.J.relata o episódio:

    Achei que as coisas fossem mais fáceis para um estudante, mas, àsvezes,complicam, temos que fazer coisas muito chatas.Inclusiveu ti nha que pagar tipo mil, mil e quinhentosdólares, em dinheiro, para um seguro. Se eu não comprasse oseguro não medariam o vistode estudante. Quando eu meinteirei disso, queteria quepagar isso, aquilo, uma série de coisas, pensei: melhor não ir para o Brasil, porque não tenho o dinheiro. Eu não sou deuma situação social muito elevada.


    exigência e cobrançade um seguro-saúde é de todo desarrazoada, posto que Brasil possu um sistema universal de saúde disponíveltanto a brasileiros como a estrangeiros aqui residentes. Para o atendimento gratuito em qualqueposto de saúde, solicita­ se apenas a apresentação do Cadastro Nacional de Pessoas Físicas {CPF), documento prontamente obtido junto aos postos de atendimento da Receita Federal mediante a apresentação, pelo estudante intercambista, do p rotocolo de registrjuntà Polícia Federal quando chega à universidade de destino.

    A exigênciade pagamento do seguro-saúdena vultosaquant ia de USl.500,00, em dinheiropossui carátefrancamente restrit ivo e privilegia estudantes de alt podeaquisitivo. Ademais,no caso relatado por N.J., ficou evidentque os serviços migratóriosbrasileiros não prestam informações devidas aos pretendentesde visto ao omi tir ou ao menos não esclarecesobre os direitos dos beneficiários do Acordo de Residência ratificadopelo Brasil e Peru6

    Em termos jurídicos, o termo "visto Mercosul" é impróp rio, pois, na realidade,trata­ se de autorização de residência, outro insttuto m igratório. A autorização de residência é concedida ao imigrante quando já se encontra no território nacional, dispensandoa solicitação do visto consularÉ ju stamen te esta a diferença entre os doitipos jurídicos:o visto deve ser obt ido, necessariamente, junto a uma representaçãodiplomática brasileira situada no Estado do p retendente ao ingresso,enquanto a autorização de residência é solicitadaem qualquer posto da Polícia Federal, na fronteira ou no interior do território naciona l. Apresentando os documentos exigidos, a autorização de residência é deferida independentementeda situaçãomigratória do requerente,se regulaou irr egular7


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  4. OAcordosobreResidência para Nacionais dos Estados Partes doMercosul, Bolívia e ChileDec reto69752009entrou em vigênciregional no ano de 2009. A partir deentão,criou-seuespaço de livrecirculação para residência e trabalho aos origin ários dos Estados que o ratificaram,dispensando qualquer visto para ingressoem seu terrtório e admit indo residêncitemporá ria, por até doi(2anos, por requerimento direto junt o a qualquer posto da Polícia Federal, no caso do Brasil.

  5. Para obter direito de residência temporié necessário que o requerente apresente documento de identificaçãociviou passaporte válido, prova da nacionalidade, feita pela certidão de nascimento ou por diploma de natural izaçãocertidão negativade antecedentes crim inais obt ida no seu país dorigem ou procedência e no

    Essas informações, entretanto, não foram prestadas a N.J. pelos funcionários consulares, em violação ao princípio da publicidade administrativa co nsag rado p elo art. 37 da Constitu ição Federal, ao qual estão vinculados todos serv ido res públ icos8• Além disso, ao condicionarem a emissão do visto de estudante ao pagamentde um montantque poderia ultrapassaro valor de R$4.000,00, a depende do câmb io, restringem a entrada ao impor onerosidade excessiva ao sol icitan te, que tem garantido o seu dire ito de ir e vir entre as fronteiras dos dois países, mesmo quando pretende prolongar sua estadia por até dois anos, o que não era o caso de N.J. Difici lment e, pessoas sem inserção profissional específica conhecem as normativas mercosulin as. Taiinform ações deveriam, ob rigatoriamente, serestadas pe los serv iços mig ratór ios aos benefi ciários do Acordo do Mercosul. Nesse caso, foi o Escritório de Apoio ao Visitante Estrangeiro do campus de Rib eirão Preto quem escla receu a N.J. sob re seus direi tos de trânsito e permanência, orientando-o sobre os documentos que deveria apresentapor ocasião de sua chegada.

    Sobre a falta de nfo rm ação, publicidade e transparência nos atos e práticas administra tivas, N.J. relata out ro ep isódio, desta vez presenciado na fronteira, quando policiais federaisinte rp elaram, de forma intim idatória, três jovensde origemcolombiana, quando declararam que pretendiam viajapelo Brasil durante os próximos três meses. Após essa info rm ação, os p oliciais passaram a exigira exibi ção de todo dinheiro que traziam consigo e, ao serem atendidos, alegaramque o m on tan tera insuficiente para o tu rismo prolongado. N.relata que foram apreendidos CD-ROM com gravação de músicas que os jovens traziam consigo. É o seu relato:

    Havia três rapazes que eram colombianos, (...eles tentavam falar em espanhol com gestos eficaram um pouco nervosos. Não os trataram bem.Osdeixaram ali um tempo, o ônibus não saía elesficaram ali esperando vários minutos eles ficaram nervosos, assustados, porque pensavam que o os iam deixar passar. Penso que era porque eles estavam passando como turistas, mas como turistas eles queriam ficar mais de 30 dias. Os policiais diziam: "Mas por quvocêquer ficar 90 dias?", Quanto dinheiro vocês têm?".


    Como Colômb itambém é Estado-parte do Acordo de Residência, que confe re aos colombianos inclusiveo direito aotrabalho, a abo rdagem policial foabusiva e igualm entincompat ívecom o dever de inform ar devidamen te sobre as prerrogativas mercosulin as e a forma adequada de acessá-las. Nem sua entrada como turistas poderia ser obstaculizada, pois os beneficiários teriam três meses em situação administ rativa regular para solicitaos documentos e certidões criminais junto ao seu Estado de residência e a órgãos brasileiro s.

    De S.A.N., também ouvimos queixas relat ivas à burocracia do Consulado brasileiro no Peru na obtenção do viso de estudante, mencionando, inclusive, a exigêncide contratação de seguro -saúde. Da mesma forma, não recebeu inform ações adequadas submeteu-se à

    exigência pagando pelo seguro. Uma vez no Brasil, necessitando de atendimento médicoa companh ia segurado ra negou, inicialmente, o pronto atendimento e a estudante precisou recorreao serviço público de saúde. A info rmação de N. suscitou o seguin tdiálogo:

    Quando você veio para o Brasil, fourna exigência fazer seguro?Sim, éurna exigência para ganhar o visto. é muito caro? -Sim, é caro(...Para mim saiu mais barato pelo fato de eu seruniversitária. -[A falta deEsse seguro pode impossibilitar aviagem? Sim, sim, eu tenhuma amiga que quasenão conseguiviajar, ela não tinha dinheiro teve que fazer um empréstimo porque não tinha dinheiro para vir.


    Tanto S.A.N. como R.R.W., peruanas, vieram po in termédio de acordos interinstituciona is específicos firmados entre suas universidades a USP. S.A.N. cursou Adm inist ração na Pontifícia Universidad Católica dei Perú (PUC) e R.R.W., Direito, na Universidad Nacional de Tumbes. Esses convênios facilitam a obtenção da Carta de Aceite jun tà unive rsidade de dest in o, embora não garantam, como regra geral, a concessão do vistde estudante, prerrogativa discricionária do Estado. Para o ing resso no Brasil, não cogitaram, podesconhecimento, utilizar-sedo procedimento simplificado e menos oneroso estabelecido pelo Acord de Residênc ia, que deveria, inclusive, dispensar a apresentação das certidões


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    Brasilcomprovantde residênciduas fotos 3x4.Munido dessesdocumentos,obtém permissãodingressoe estadia no Brasil por até dois anos (BRASIL2009 ).

  6. CONSTITUIÇÃO FEDERAL.Art.37.A administração pública direta indi reta de qualquedos Poderesda União,dos Estados,do Distr ito Federae dos Municípiosobedecerá aosprincípiosde legalidade, impessoalid ade,moralidade, publicidade e eficiência.(BRASIL1988).

    negativascriminais em face à declaração de aceite da universidade em receber o estudante. A falta de cumprimento das normas migratórias do sistema de integração regionasul ­ americano, a desconsideração de seus fundamen tos e dos direit os constituc ionais assegurados pelas Con stitu ições dos Estados -part e, resulta em trâmites consulares burocráticos e one rosos, uma polít ica contrad itó ria aos benefícios que o intercâmbio universitáriproporciona aos Estados,às universidadese às pessoas envolvidas.

    Os estudan tes K. F., de Ango la, e O.M., da Jamaica, vieram através do Programa de Estudantes Convênio de Graduação (PEC-G), desenvo lvido pelo Ministé rio da Educação (MEC), em parceria com o Ministério das RelaçõesExteriores {MRE)9• Vieram para cursaritegralmente, sua graduaçãono Brasil. K.F concluiu seu cu rso na Faculdade de Direito (FDRP) e O.M., na Faculdade de Odontologi{FORP).

    Desde a criaçãodo PEC, a USP mantém com o programa uma relação instávele restritiva.O primeiro convênio USPP/ EC-G foem 1967.Posteriormente,credenciou-se em 1985e1989. A partir de 1995, a participação da universidade fomais frequente, porém, igualmente descontínua. No ano de 2018, USP não se credenc iou e, portanto, deixará de receber

    estudantes do PEC1º.

    Os exames de ingresso são realizados sob coordenação das missões dip lomáti cas brasileiras no país de origem do estudante. Após a aprovação em concurso de provas e títulos -os pretendentes devem apresen tacert ifi cado de conclusão do ensino médio e de proficiência em língua portuguesa (CELPES-BRA) é firmado um Termo de Responsabilidade Financeira, em que asseguram temeios para custear as despesas com deslocamentos e subsistência no Brasil durante o período de duração do seu cu rso (art. 6°,111, Dec.7948/2013).Embo ra o governo brasileiro não financiea estadia os estudos, o aluno PEC pode se candidataa bolsasou ajudas de custo junto a instituiçõespúblicas ou privadas brasileiras,nas mesmas condições que os nacionais.

    Independentemente do tempo de duraçãodo curso, o estudante necessita comparecer anualmente nos postos da PolíciFederal para solicitaa renovação do seu direito de residêncie deve fazê-lo antes do vencimento do peodo consignadoem seu passaporte. Caso não cumpra o prazo, estará sujeito à mult a. Trata -se de atos de cont role que importam na presunção de culpabil idade do aluno estrangeiro demandam burocracia desnecessária e onerosa aos beneficiários de programasgovernamentais regidos por princípios e regras especiaisde cooperaçãoacadêmicaentre os Estadosconveniados. Em relaçãoa isso,quando perguntado sobre a acolhida junto à PolíciFederal, O.M. rela ta:

    A única coisa que não gosto no meio do processo, mas é completamente culpa minha, é multa que, às vezes, eu tenho que pagar, porque se você deixa de se registrar ou renovar seu visto, depois da data,diariame nte, você tem que pagar a multa. Eacho que última vez que eu tive que pagar a multa deu cento poucos reais, e foi um pouco caro, porque foi no final do semestre, eu estava esperando volta pra casa, eu estava nzero, no vermelho.


    buro cracia dos serviços migratór ios é agravada por sua in justi ficável morosidade, considerando os recursostrazidospelinformatização entre os órgãos do Ministé rida Justiça responsáveispela regularizaçãoda estadido imigrante.A demora constitui-seem fator de transtornospara os inte rcambistas esse aspecto é frequentemente levantado pelos imigrantes.Foiinclusive, um dos aspectos destacados du rante a realização da/ Conferência Nacional sobre Migração e Refúgio (COMIGRAR)desenvolvida entre outubro de 2013 junho de 201nas pri ncipaiscidades brasileiras de destino migratório (BRASIL, 2014,

    p. 5, p. 17). O problema é que, a cada ano, deve seemitido um novo Registro Nacional de

    Estrangeiro (RNE)11, um documento semelhante à Carteira de Iden tidade (Registro Geral, parnacionais).Em razão da demora a seentregue, o im igranteporta apenas o protocolo do seu requerimento,emitido em¼ de folha de papel A4. Por não guardar semelhança com


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  7. PEC-G é regido pelo Decreto Presidencian. 7.9482013(BRASIL, 20 13)Apág ina do programa abrigada pelosite do MinistéridasRelações Exteriores (MREdo Brasiinforma que a África é o continente de origem da maior parte dosestudantes, com destaque para Cabo Verde,Gui-Bissau Angola. Na América Latina, maiopart icipação é de paraguaiosequatorianos e peruanos;e nÁsia,Timor LesteOscursos com maior número devagasoferecidas são Letras,Comunicação Social, Administração, CiênciasBioló gicase Pedagogia.Disponívelem: <http:// www.dce. mre.gov.brPEC/Ghistor ico.php>. Acesso em:6 mar. 2018.

lOAs informaçõeforam prestadaspeloEscritóriode Apoio ao Estudante Estrangeiro do campus de Ribeirão Preto.

  1. Atendendo às recomendaçõesapresentadas pelos imigrantes na COMIGRAR, Ministério da Justiça alteroo nome do documento paraCarteira deRegistro Nacional Migratório.

    documentos oficiais, o protocolo, geralm entenão é aceito po órgãos públicos e privados, como cartórios e bancos, o que dificu lta, aos imigrantes, o acesso a dire itos públicos e civis

    K.F. relata:

    minha filha precisou sair do Brasil e eu tive que autorizar a saída dela. Só que quando a gente foi ao cartório reconhecer a assinatura, eles acabaram por não me ate nder, porque eu não estava com o documento pessoal. Ele não estava vencido, mas o processo acontece da seguinte forma: a gente vai, sempre que chega a data para renovar e eles dão um protocolo. Esse protocolo tem validade atéque o vistoseja deferido pelo Serviço deJustiça. SÓ que atrasa quase sempre. Neste momento vai fazer exatamente um ano que eu pedi a prorrogação do visto, mas até hoje não saiu a RNE.


    M.A.E.S., que cu rsa o douto rado, é o único beneficiado com bolsade estudos no Brasil. Sua estadia é subsidiada por convênifirm ado entre o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico Tecnológico (CNPq), brasileiro, e TheWorldAcademic Science (TWAS), fundação

    sediada na cidade de Trieste, Itáliavoltada ao financiamento à formação de pesquisadores originários de países em desenvolv im ento em p rogramas de doutorado e pós-doutorado 12•

    M.A.E.S. é pro fesso assisten e no Departamento de Farmacologia da Universidade de Aexand ri a, onde se graduou em Farmácia, e destaca sua origem acadêmica, pontuando, provavelmenteem razão de preconceitos por parte de brasileiros em relação à sua origem,

    que Ahmed Hassan Zewail, laureado com o Nobede Química,em 1999, também foaluno, professoe pesquisadoem sua universidade.


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    A HISTÓRICA DISCRIMINAÇÃO JURÍDICA CONTRA IMIGRANTES NO BRASIL


    Para a devida compreensão e contextualizaçãodos fatos narrados pelos estudantes de ve­ se levar em conta a po ica m igratória vigente no Brasil desde década de 192013

    Apesa das igrações internacionais terem sido essenc iais à formação econômica do Brasil, elas se caracterizaram, p ri ncipalmente, pelcruel deslocamen tforçado de povos africanos durante os três primeiros séculos de domínio português. A parir de meados do século XIX, europeus e asiát icos at raídos pelas propagandas subsídios oferecidos pelo governo brasileiro pro du tores de café, inclusive da região de Ribeirão Pre to, passaram a consti uir as camadas popula res do povo brasil eiro . Vulne ráveis às cr ises nos seus Estados de origem, esses imigrantes labora is encontraram no Brasicondiçõesigualmente restritivas.

    O caráter das migrações a trabalho perfil dosmigrantesque chegavam ao Brasil, constituído por pessoas de baixo poder aquisitivo, pode explicaas reações xenófobas dos brasi leiro s o rig iná rios, que este reot ipavam as m in orias étn icas com ad jetivos deprec iativos. Explica, igualmente, o cont role migratório vol tado especialmente cont ra afr icanos e asiát icos em normas editadas a parir da Proclam ação da Repúb li ca. Este viés

    ni tidam ente racista foi aprofundado nas décadas de 1920 e 30, quando leis migratórias proíbem a entrada de iigran tes or iginá ri os desses contin entes e a contratação de estrangeiros passa a sofrer restri ções nas leis trabalhistas rom ulgadas no pe ríodo. iiração de negros é especialm ent e rep elida pelos representantes da elit e branca brasileira, presença exclus iva em todas instâncias de poder, inclusive nas universidades brasileiras. Os debates sobre essa ques tão, registrados nos Anaido Congresso Naciona l,

    ·

    evidenciam profunda dimensão dessa xenofobia (Geraldo, 2009, pp. 181-184>4


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  2. TWAS foi fundada e1983 por niciativa de AbduSaiampesquisadopaquistanêse PrêmiNobel em Física. 1nicia[mente recebeu o nomThird World AcademyofSciences.Atualmenteseu fundo é subsidiado pela contr ibuição de out rolaureados.

13 NBrasil, apesar do errri ter sido ocupa do por iigranteso caráter restritivo dasnormas migratórias vem

desde asprimeirasleieditadaspelogoverno de D.JoãoVI,em 1817.A partir de 18S0,com pro ibição do trá fico de escravos e em face à necessdade de trabalhadoresimigranteso governo brasileiro optou por originários da Áustria,

Alemanha, Suíça e Iáli a, em franca políti ca eugenéti ca quadotará restriçõesainda mais discriminatórias a part ir da década de 1920 (Sprandel, 2015; Carneiro, 2018).

  1. A Constitu ição de 1934, § 6"do art. 121estabelecia:"A etra da iigantes no errtó ri nac ioal sofrerá as restriçõesnecessárias à garant ia da in tegração énica capacidade sica e civil dimigrantenão podendo,

    No entanto, em relação à migração qualificada constituída popessoas com habilidades autenticadas por títulos acadêm icos ou por talentos objetivamente reconhecidos, as leis migratórias brasileiras têm sido flexíveis, até mesmo o Estatuto do Estrangeiro (Le6.815/1980recém-revogad,ode caráter altamentrestritivo e criminalizante15• O Estatutofundamentado no paradigma da segurança nacional, estabeleciacomo preferencial ao visto de permanência o im igrante portador de habilidadesadequadas e necessárias ao desenvolvimentda infraestrutura industrial do país, prioridade dos governos m ili tares da época em que a lei foi edi tada16

    A nova Lei de Migração, resultado da participação de imigrantes, representantes de associações de acolhida e de órgãos administrativos e juríd icos, como o Ministé rio da Justiça, o Min istério do Trabalho e Emprego e a Advocacia Gera da União, consolidou essa prioridade e ampliou o benefício, facilitando a concessão do visto temporár io e a autorização de residência aos imigrantes portadores de diploma universitário ou com intensãode desenvolveratividadesde ensino, pesquisaou extensão acadêmica no Brasil17.

    De qualquer forma, leis não são garantia de efetividadede direitos,nem quando decorrem de amp lprocesso participativo,como é o caso da nova Lei de Migração, se aplicadas por órgãos com tradição persecutória ao imigrante. Aliás, o Regulamento Admini strativo da Lei de Migração(Decreto 9.1992017foi elaboradoemmomento político distinto daquele de sua redação e aprovação. Assim, reedita e revigora o caráter restritivo que a nova lepretendia revogar. Trata-sede insólito caso de decreto regulamentar contra legem.


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    ESTUDANTES NEGROS E A DESCONSTRUÇÃO DO MITO DA "DEMOCRACIA RACIAL" BRASILEIRA


    Leis que pena lizam o racismo existem no Brasidesde1950, po rém, até as últimas décadas, não tinham qualquer efeitprático. É o caso da denominada Lei Afonso Arinos (Lei 1.390/1951) (BRASIL1, 951)18• Somente com a vigênciada Le7.716/1989,de autor ido deputado negro Carlos Alberto Oliveira,posteriormente ampliada pela Lenº 9.459/1997, do deputado Paulo Paim, igualmente negro, o racismo deixou de ser qua lificado como

    contravenção para ser tipif icado como crime. Somentà partir de então, tem sido possível

    obter resultados jurídicos no combate à discriminação e racismo.

    A disc ri inação expressa em leis migratórias e sugerida na existêncide leis antirra cistas no Brasiencontra forte ressonância na sociedade e tem se manifestado de forma veemente no am biente universitáribrasileiro, tanto em relação a professores acadêmicos,como a estudantes com determinados estereótipos étnicos e sociais,vít imas desse preconce ito.É o que relata S.A.N., estudante de Administ ração,origináriado Peru, que sent idificuldade em se relacionar com alunosbrasileiros:


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    poréma corrente imigrat ória de cadpaísexceder, anualmente, o limitededoispor cento sobre o número totadorespectivos nacionais fixados no Brasil durante os Últim os cinqü eta anos (BRASIL, 1934).

  2. Eno vero de 2017 entr ou em vigência a nova Lede Migração (Lei 13.4452017), revogando o Esatu o do Estrangeiro,queestabelecicomtipopenacondutasque, erelaçãoaos brasileiros, constituíam direitoscomoa liberdade de expressão e sindical ização.O seart.125,Xcoinava copena de detenção de 1 a3 anos,seguida de expulsãoquaisquer dascondutas descritas nos artigos 106 10(BRASIL, 1981 ).

  3. Le6.815 80 Art. 16. O visto p emanente p oderá seconced ido ao estrangero que pretenda se fixar defin itivamente no Brasil. Pagrafo Úico. imi gra ção objetiva rá, prim ordia mente, ropiciar mão- de-obra especia li zada aos vários setores deconominacional, visando ao aumento da produtividade, à assimilação de

    tecnologia e à captação de recursos para setores específicos.

  4. Éue estabeleceo§ 5o do art14o art30 e 31 dLe13.445/2017 (BRASIL, 2017 ).

  5. Leforesposta o deputa do conservadoque lhe emprestou o nomeem faceà repercussãointernacional do episódio que envolvebailarina norte-ameri canaKatherinOunham impedida de sehospedarno HoteSerrador, no Rio de Janeiro durante excursão no Brasil.dibrasileira não deu qualquer impo rt ânciao caso, que foi, entr etanto, amplamentcriti cado pela imprensa estrangera. A lenunca foefetivamente aplicada em razão das artim anhas para contorná-la. Ao invés de discrimi naçõesexplícitas contr a pessoas não brancas, exigia-secomo requisit" boa aparência".

    Não sei se é em toda faculdade, mas houve um problema com os outros alunos, que era o de trabalhar em grupo, porque aísim, eu mesenti discriminada, porque por você ser estrangeira eles acham que você não sabe o terna, então eles ficam duvidandde você e não interagem tanto com as pessoas. Porém o terna do trabalho e o grupo são coisas bem separadas.


    Quando perguntamos se sentia dife rença de tratamento em relação a alunos de outras nacionalidades, respondeu: "Sim, poexemplo, temos o grupo iTeam19vejo que sempre organizam viagens, organizam passeios com os alunos europeus, mas não conosco".

    M.A.E.S, apesade cursar o doutorado e ter contatos m airestritas em compa ração aos alunos de graduação, também notou essa di fi culdade de integ ração entre estudantes brasileiros e estrangeiros. Em sua fala, pontua:

    Eu seique todo estudante tem muitos amigos, mas a amizade aqui cresce somente fora dauniversidade,nãodentro. Vocês preferemsair dela,mas nós,na nossa universidade, tentamosfazercom que os estudantes amem a universidadee permaneçam nela para se conhecerem dentro da universidade. vida de estudante ganha pontos no meupaís, para ser honesto com voce.


    A p ecep ção de R.R.W. coincide com a de SAN.e M.A.E.S. Quando perguntada se a integração do in tercamb ista que vem ao Brasil é satisfatória, nega e explica os motivos:

    Nunca imaginei que houvesse tanta discriminação entre brancos e negros. No meu país não se discrimina tanto por isso. Isso me impactomuito.Isso mudou a idéia que eu tinha sobre o Brasil.[...) Uma experiência que tive: fui a São Carlos com dois amigos africanos quando voltamos o motorista pediu a um deles o passaporte, porque era urna pessoa de cor,a mim não me pediram.


    Nesse ponto, ao perguntarmos se também sofreu alguma atitude preconceituosa, respondeu:

    Nos primeiros dias de aula, nos primeiros meses, cheguei e me senti muda e invisível. Meus compa nheiros não falavam comigo e eu não podia falar com eles. Foram se passando as aulas trabalhos.Quando ti nha que fazer trabalhos em grupo era difícil. Ninguémme chamava para participar e eu tinha que fazer o trabal ho sozinhaFoi difícil. Eu penseique isso era porque os brasileiros amamtanto sua cultura, que não querem compartilhar com outra pessoa. Quando ia "bandejar", sempre me sentava sozinha, pois ninguém me chamava. Mas umdia havia uma pessoa, que era da França, e ela ti nha muitos amigos ao redor. epensei que causanão era aquela, porque a menina da França tinha amigos e eu, do Peru, não tinha. Uma veme encontrei com um brasileiro, e estava com dois amigos africanos, que nos perguntou de onde éramos. Quando disse ue era do Peru o brasileiro não se mostrou interessado, uma coiso normal.


    A f ina ironia de R.R.W. qualifica como " normal" a discri inação,po brasileiros,de alunos provenientes de Estados Sul- Americanos, e essa normalidade é, justamente,natura lizada pelo fato de se tratar de atitude instituc ionalizada. Reflete uma polít ica m igratória que tem sidtraduz ida em leis e práticas administrativas de longa duração, pautadas po uma "cultu ra acadêmica" que justifi ca necessidade de se depu rar, no Brasil, qualquer resquício de sociedades cu j"at raso" é em pir icam ente evidente. Nesse sent ido, a m iscigenação e as m igrações eugenét icas ser iam instr um en tos a possibilitar que as "virtudes" e a "superioridade" branca predominem sobre as " m ácu las" da negr itude, " salvan do" a sociedade brasileira de seu inexoráveatraso. Tais idéias, defendidas por muito tempo entre acadêmicos brasileiro s, foram insti tucionalizadas politicamente e continuando afetando práticas sociais legiimando e reproduzindo um cotid iano [...]de desigualdade e humilhação" (Souza,2015, p. 31). Jessé Souza denomina esse fen ômeno de " sociologia espontânea do senso comum", isto é, quando imperaivos inst it ucio nais são internal izamos como naturai(Souza,2015, p. 40).

    K.F., angolano, pontua, com base em episódios vivenciados no Brasil:


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  6. Grupo formado p oestudantes do campus de Ribeirão Preto vol tado à integração dalu nos estrangeiros e apoio a brasileiros que desejam realizaintercâmbios fora do paísA foto decapa da págindo iTeam na inte rnet é in tegralmen te comp osta por estudantes brancos e podeser acessada no endereço:<https:// www.iteamusprp. com.br/>.

    É interessante falar da política migratória brasileira, porque o Brasil tem sido país de destino demuitos imigrantes africanos, da própria América Latina temo caso do Haiti. Por essa razão, pelo fato do Brasil ser um país que os imigrantes têm escolhido, acho que está a altura do poder público sentar à mesa para debatera políti ca migratória, de modo que os direitos humanos dos imigrantes sejam, de alguma forma, garantidos. Até para garantir os serviços mais básicos: emprego, saúde, educaçãomoradia. Muitos estão ao relento, nem sequer tem um lugar para dormir. Então, é interessante que Brasil pense sobre isso. No fundo, a humanidade é isso: o futuro da humanidade é a imigração. Os países que estiverem economicamente bem estruturados serão, imediatamente, o destino de qualquer pessoa que queira melhorar suqualidade de vida.


    cultu rracista discr iinató ri da sociedade brasilei ra, resu ltado da inserção do Brasil no eixo Atlântico do escravismo moderno (Mbembe, 2014, p. 90), expressamente identif icada na eugenia das normas relativasà imig ração (Geraldo, 2009), é materia lizada em práticas adminis trat ivas e juríd icas ainda persistentes.Na qualidade de úl tim o país reconfigurar a econom ia colonial e extinguira escravidão, a sociedade brasileira foi formada

    sob o estigma da negritude africanidade, em sua forma ideológica e historicamente forjada(Mbembe,2014, 40-43),o que explica sua busca pelo ideaBranco (Mbembe, 2014,

    pp. 84-87)20•

    Na América, a escravidão não foi estabelecida pela subjugação dos vencidos no processo de ocupação europeia, pois aprisionou povos que viviam em região determinada do planeta, a África Ocidental e Meridiona l. Somente a partir dessa escravidão de mercado, os Negros ou Africanos passaram a ser sinôn imos de escravos (Guimaraes, 2003, p. 99). Trêsséculos e meio derelações de trabalho escravagistas cravaram na sociedade brasileira valores negativos que, até o presente, predominam nas relações púb licas e civis, e fo ram percebidas po K.Fque ratif ica os conceitos apresentados po Mbembe 21:

    Acho que, ngeral, que vive na consciência coletiva do brasileiro com relação às pessoas negras é tudo isso que a mídia passa, queo negro éladrão, o negroéqualquer coisa, menos pessoa. Masé interessanteouvir esse negro, ouvir essa pessoa, pois todo mundo tem algo para passar, por mais insignificante que seja. Eu, pessoalmente, não concordo que algumas pessoas sejam consideradas insignificantes e outras melhores. Mas, aqueles que, a um primeiro olhar, é julgado insignificante talvez tenha a passar alguma coisa (quem discrimina) não entende que as pessoas não aprendemsozinhas.


    Para comp reender o contexto discrimina tór io narrado pelos estudantes, o racismo e o preconceito que dominam as relações sociais brasil eiras, é necessár ilevaem conta que esse sent im en ttem sido fort alecido retro alim entado jus tam ente no amb iente acadêmico, local de elabo ração das teo rias b iológicas e sociológicas que buscam conferir

    status científ ico ao mito racial.Nesse sentido, à Escola Eugenética, produção teórica

    das p rim eiras faculdades brasile iras do sécu lXIX, seguiu-se, partir de 1930, Escola Sociológica, cuja característicaé negação da questão racia do racism o brasile iro pela ideologia da mestiçagem", tenta tiva evidente de apagaou ocu lta istó rico op róbr iNegro (Mbembe, 2014, p. 35). ParAbdias Nascimento, acadêmico negro rejeitado pelas universidades rasileiras, ta l ideo logipromoveu um verdadeiro genocíd io, m aterializado no estupro e na objet ificação da mulhenegra apresentada no ext erio como nosso

    principabem de consumo e exportação (Nascimento, 1978).

    O desejo de ocu lta passado escravagista a negritude africana para ressaltar o caráter

    Branco do bras il eir o é des tacado por K.F.:


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  7. Segundo Mbembe: "O Negro não existe enquanto tal.Éconstant eent produzido. Produzir o Negro é prod uzir um vínculo social de submi ssãoe um corpo de exploração,isto é,um corpo inteiramenteexpostàvontade do

    usenhor, e do qual nos esforçamos para obtemáximo de rendimento. Mercê de tra balhacorveia, o Negro é também de injúria, o símbolo do homem que enfrenta o chicote e o sofrim entnum campo de batalha em que se opõem grupos e facções sociorracialmentesegmentadas (Mbembe,2014, p. 40).

  8. "Ao longo do séculXVII, um im enso trabaho legislativvem selaseu destino. fabricação das questões de raça no cont in enamericano começa pela sudestituição cívica e, portanto, pela consequente exclusãode privilégios e de direitos assegurados aos outros direito de apelar aos tribunais faz do Negro uma não pessoa o ponto devista jurídico". (Mbemb e2014,p. 42).

    Por meio dessa herança histórica comum que existe entre a Angola e o Brasil, sempre pensei que o Brasil fosse uma espécie de país africano fora da África, por conta do fato de terem vindo várias pessoas do continente africano para cá. Mas aí, ua ndo eu cheguei aqui, essa impressão se desfez rapidamente, porque no Brasil q uas nada se sabe sobre sua herança africana. Ejá cruzei com rios brasileiros que diziam que eu falava bem líng ua portuguesa e acabavam por me perguntaonde é que eu tinha aprendido. Nem sequer sabiam que a Angola fala português, que Angola foi uma colônia de Portugal, assim como o Brasil. Então, há uma igno rância muito grande em relação a essa parte africana que o Brasil nega o tempo todo. Ao negar essa parte africana o Brasil acaba eleva ndos eu lado euro pe uJá conversei com vários brasileirosque ao falar da árvore genealógica de cada um, você percebe, falam com muito orgulho quando tem pessoas que vieram da Europa.


    Constituir -se em um "país africano fora da Áfr ica" era, justamente, a máculoque os proprietários intelectuais brancos procuravam extirpar no período de constitu ição da "nação brasileira": a sociedade precisava ser embranquecida e seu passado escravista, esquecido22

    Com o aumento dos fluxos migratórios globais,neste início de século, temos assistidotanto o recrudescimento do biologismo racial do século XIX, desta vez ancorado nos estudos do genoma parajustificar distinções entre grupamentos humanos {Mbembe, 2014, p. 45), como o culturalismo abstrato, estampado na xenofobia manifestaem relação aos povos árabes e islâmicos(Balibar y Wallerste in, 1991).

    Gilberto Freyre foi o fundador acadêmico do mito da democracia racial brasileiro. A partir de Coso Grande e Senzala (Freyre, 2003)23, a escravidão do negro e sua presença entre o povo brasileiro deixam de ser entendidascomo tragédia inarredávee incapacidade de desenvolvimento para converter-se em possibil idade de superação da negritude pela miscigenação, em esperança de desenvolvimento pela formação de uma nacionalidade livre do estigmaNegro.

    Segundo a conhecida tese de Freyre,o Brasil possui relações raciais igualitárias,apesar da estrutura aristocrática de sua sociedade,ideia que promoveu uma simpatiinternacionaaos brasileirosao contrapor-noscom o racismo dos Estados Unidos. A fantasia acadêmica da democracia racial foi abraçada pela sociedade brasileira, além de repercutir fortemente fora do Brasilcomo pudemos depreender dos depoimentos dos intercambistas que, invariavelmente,se referiram a elpara pontuar a surpresa com a realidade efetivamente vivenciada.

    Sobre esse aspecto, O.M., que é jamaicano,expõe sua impressão acerca da invisibilidade ou da ausênc ia do negro em locais que costumam ser frequentados, quase que exclusivamente, por brancos, como nas viagens aéreas, por exemplo:

    imagem do Brasil, antes de vir para cá, é aquela imagem típica de qualquer gringo: praia, fute bo l, carnaval, porque realmente no Caribe a gente não tem muita (informação), não se fala muito dos países da América do Su l. (...Agora que es to u aqui, tenho uma imagem completamente difere nte image m que tenho agora é um pouco negaiva. Antes a imagem que eu sempre vi, que às ve zes eu via na televisão, os jogadores, a maioria deles, negros. AÍ, eu lem bro que minha primeira imagem, a que tive dent ro do avião, quando estava chegando aqui, foi de pessoas não negras. Eu até pensei estar em um avião errado. Pouco a pouco, eu comecei a e ntndque existe, infe lizme nte, espaços, onde fico a maioria das ve zes, como o espaço universitário, que não te m tantas pessoas que tem a cara da maioria da população. Existe essa desigualdade social. Essa é a imagem que eu ten ho agora do Brasil.


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  9. Neste sentido, emblemático o ato de Rui Barbosa, qua ndo Ministro das Finançasque emitiu aCircular n. 29, de 13 de Maio de 1891,no aniversário de dois anos da denominada Lei Áurea, que aboliu escravidãono Brasil, determinando a destruição pelo fogo dtodos os documentos históri cos arquivorelativos ao comércio de escravos e escravidão em geral (Nascim ento, 1979, p. 49).

  10. livro CasaGrande e Senzala, de Gilbert Freyrepublicado e1933, é o marco institucionado mitfundador da identi dade singular" do "povo brasileiroda ilusãode uma "sol idariedade socialmani festa no "encont ro de raçasno seu "p ersonalismo emotivo", pensamentque ultrapassou nossas fron teiras einternament e, " naturalizou" a profunda desigualdaddclasseno Brasilpela ideia de que "certo estoque cultural é acausa e também legit imação ddesigualdade entre indi víduonações(Souza,2015, p. 47).

    mito da democracia raciabrasileira, entretanto,não foi inventado po r Freyre24, pois os movimentos negros da época também participaram desse projeto de formação de uma nacionalidade mestiça (Guimarães, 2003, p. 101)Lívio de Castro (1880) escreveu sobre o " impu lso democrático natura l", que permeia a interação racial no Brasil. Evaristo de Moraes aponta os Estados Unidos como "expressão máxima do preconceito raciados tempos modernos" em comparaçãocom a "fusão pacífica e produtivadas duas raças"no Brasil (Andrews,1997,98-99). Nesse aspecto, mostram como descendentes de escravos

    adotaram,de forma perversa,a razão negro cri icadapo Mbembe (Mbembe, 2014)tema

    posteriormenteanalisado por Aniela Maia Ginsbeng, no campo da psicologia,nos estudos patrocinados pelo Projeto UNESCO (Cunha y Santos, 2014, p. 321)25•

    As histórias relatadas pelos estudantes inte rcambistassão unânimesem apontar, num primeiro momento, que também foram capturadospelfantasia da democracia racial e da cordialidade do brasileiro. Se no iníc io referem-sea essas ide ias,em seguida, passam a relatar seu processo de desconstrução, especialmente K.F O.M, que são negros, ao descreverem episódios violentos de racismo e suas dificuldades de integraçãoem um ambiente universitário elitista, Branco e historicamente enviesado pela discriminação do Negro.

    N.J., que não é negro, mas possui típicos traços and inos, também foi discriminado, evidenciando o que Mbembe chama de"tendencial universalização da condição negra", ou seja, quando toda a "humanidadesubalterna se torna negra" (Mbembe, 2014, p. 16, p.21). Ele relata sua dificu ldade em se integrar no ambiente universitário, nos seguintestermos:

    Vou falar algo que me marcou negat ivamente foi com relação aos meus colegas: eu note i muita diferença em relação aos estudantes de Medi cina. Quandcheguei aqui as pessoas me disseram que eleseram ricos. Eu estudo em uma universidade pública e há pessoas que têm dinheiro, mas aqui q uase todos têm bastante (dinheiro).Por isso têm bons carros por isso não comem no "bandejão". Por isso se vestem bem, e isso me chocou um pouco. Onde estudo, somos de classe média, mas também de classe baixa, mas todos somos estudantes de Medicina. Todos. Quando cheguei aqui comecei as aulas no hos pital me senti incomodado. Eles disseram: "vamos sair em ufim de semana, pra comer no centro." Eu fue gastei RS 90,0 0Para eles é normal, pega vam seus cartões iam passando. Eu nunca usei um cartão de crédito. Somente nBras il, fiz um cartão de débito para poder fazer a transferência de dinheiro (do Peru), mas esempre pagava com minhas notas. RS 90, 00trato também.Alguns eram legais, mas outros eram muito fechados. Já fui, em outra o portunidade, ao Chile os est udantes de lá me receberam muito melhor que aqui [...] Até agora, há poucos ue se relacionam comigo. Is so me marcou negat ivamente.


    M.A.E.S., que também não é negro, mas é árabe muçulmano, descreveu episódios de racismoque presenciou contra seus colegas de origem africana.Quando perguntado se sofreu algumadiscriminação poser estrangeiro, relata:

    Na verdade, eu acho que tive so rte porqueeu não sou um caranegro, porque as pessoas neg rassofrem bastante discriminação aqui no Brasil. Especialmente vindos da África. Eu tenho amigos da Nigéria e de ut ros lugares da África, mas no Egito boa parte das pessoas é branca.Mas eu percebi que nBrasil tem bastante neg ros e eles sofrem discriminação.Mas é um problema quando alguém descobre que sou mulçumano. Algumas pessoas aceitam, outras não.Você tem que conhecer as pessoas, se envolver com as pessoas mulçumanas, para conhecer a realidade. Esei ququa ndvocê ouve sobre pessoas mulçumanas, a primeira coisa que você pensa é "homem bomba", como se eu fosse fazer uma bomba aq unfrente da câmera. Mas isso não é verdade. Mas a mídia produz essa imagem, então algumas pessoas começam a se afastar de mim.


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  11. Antô niSérgio Guimarães aponta que, embora ma rco seja obra de GilbertFreyre, ub licada e1933, d urante a década de 1920, este discurso já se apresentava como dominante na Semana de Arte Me rna de São Paulo, e1922,"pois todos os mode rnismos vão perseguiexatame nte umideia novde Brasil e de povo brasileiro(Guimarães 2003, p.100).

  12. Arthu Ra mos, contemporâneo de Gilberto Freyretevpapel significaivo ndesenvolvimento a Escola Sociológica ao divulgar inte rnaciona lmente Brasil como u"laboratór ide ivilização a se anal isado. Sua missão foi frutífe ra e resultono Projeto UNESCOuinstit ucio nalizou, no paísuma sociologia das relações raciais. Oprojetofodese nvolvido ndécada de 1950promoveformação de centros de pesquisa eun iridades do RioSão PauloBahia Perna mbuco (Guima rães2004, pp.13-18Heringer2002p.59)Empreen didos por brasileiros e estrangeirosos estudosentretantobriraca minho para a desconstr ução do mito da relação harmoniosa entre raças, ao se debruça rformcrítica na realida de as relações sociaibrasileiras.

O.M., neg ro, filho de médicos, emociona-se ao relatar experiênc ias de discrim inação, inclusivequando se vê na necessidade de explicaaos demais colegas as cond ições que possibilitaramseus estudosno Brasil e defender seu direito de cursaOdontologia na USP:

Eu já se nt que as pessoas duvidam do processo que me trouxe aqui. Principalme nte, no meu primeiro ano, fiz questão de explicar pra todo mu ndo da minhsala, que sempre vinham me perguntar como é que eu consegui a minha vaga aqui,que não tirei vaga de ninguém, de nenh um brasileiro..A vaga que eu consegui é corno se fosse uma vaga a mais para estrangeiros, prá contr ib uir com a inte rnac io nalização da US P. Eu sempre sentia que a pessoa questionava minha presença em uma das melhores universidades

do Bras il, na qual muitosamigos deles estudaram muitopara conseguir uma vaga enão conseguem... eu chegode outro país, elesduvidam da minha capacidade. Então, muitas vezes, eu te nho que provar pra eles que sou capaz, que sou igua lque eu não sou nenhum coitado, entendeu? Também já senti que fui tratado diferente por ser..Como é que eu vou dizer? Po r ser minoria. Eu não sei se negros são minorias aqui, mas eu já senti isso. Agora, que já fa4anos que estou no Bras il, eu percebo todo dia, um pouquinho de racismo institucional,essa hierarquia racial que é aceita pela grande maioria, ou por muitas pessoas... uma situação em que você entra numa salae grande maioria não é parecida com você porque é branca. Essa é uma coisa que eu senti: estou numa instituição em que sou diferente, e que muitas pessoas parecidas comigo não tiveram oportunidade de entrar.


O.M. relataque também foi vítima de ofensas racistase, inclusive, de abordagempolicial violenta dentro do campus. Narrou taisepisódios sob forte emoção.

Nodia,estava fazendo minha prova de recuperação. Lembro que ia começar às 09h00 e antes quis ir no banco para sacar dinheiro, mas eu vi que meu ônibus estava passando e comecei a correr. Assim que ntrei ncalçada, a polícia me viu, eu não sei porquê, foi uma coisa que não consigo entender, me abordou e falou:"Mã na cabeça,vagabundo". Eu tive que provar que sou aluno da USP que ia pegar aquele ônibus... Felizmente, co nsegui chegar a tempo de fazer minha provae passar, mas, infe lizmente, isso é urna coisa que, acho que p'ro resto da minhvida, não vou esquecer.


K.F., como O.M., também foi abordado, de forma agressiva,por policiaismilitaresdentro do campus universitário:

Eu estava no banco, dentro da US PEra de noite, eu precisava sacar diheiro para carregar o celular. po lícia chego u, assim, do nada. Chegaram armados,com armas grandes, e pediram que eu saísse do banco. Eu saí e eles estavam a questionar o que estava a fazer ali.Os a rgumentos que traziam é que "era tarde", "que eu não podia estar ali". Pediram minha documentação, [perguntaram)o que esta va lá fazendo, o que estava fazendo no Bras il, tive que explica r que era estuda nte de Direito, e acabei confrontando a polícia, eu falei para eles:"Como eu faço em relação à liberdade que te nho de ir vir, onde bem entendo, e no momento que eu ente ndo?" Mas, enfim, elesfalaram que hav ia muitos assa ltos a banco e que era perigoso eu estar lá, mas a gente sabe que, no fundo, a polícia só apareceu porque era uma pessoa negra. Eu estava apenas no caixa, como qualquer outra pessoa poderia estar. A única explicação convincente é justamente toda esta questão sobre preconceito e disc riminação racial.


Da mesma forma que o racismo, no Brasilfoi prob lematizado poacadêmicos brancos, representantesda elite econômica brasileira, as universidadespúblicasaindaconst ituem­ se, igualmente, em um ambiente branco e elitista,pois é raro encontramos um professoou estudantenegro em suas dependências. Esta situaçãoapenas começou a ser minorada na última década com a instituição, nas universidadesfederais, do regime de cotas para alunos brasileirosnegros, em uma inédita política governamental de democratizaçãodo ensino púb lico un iversitário.

No entanto, emrazão do princípio constitucionada autonomia universitária e pelfato da USP tratar -se de un iversidade estadual, ela é regulada,além de suas resoluçõesinternas, po leipróprias do estado de São Paulo. Resistente em adotao sistema de cotas, da mesma forma que resiste em credenciar-seao PEC-G e PEC-PG, a USP introduz iu somente a partir de 2018um sistemamisto de cotas sociais.

Por meida Resolução 7.373, de 2017, aprovada pelo Conselho Universitário, passou-se a reservar37%das vagas de cada curso a alunos que cursaram integ ralmente o ensino médiem escolas púb licas, incluindo, nessa seleção,o recorte de raça na proporçãoda popu laçãode negros, pardos e indígenas residentesno estado de São Paulo, segundo

dados do Inst ituto Brasile iro de Geografia e Estat ística (IBGE). O novo modelo de ingresso será imp lantado de fo rma escalonada até 2021, quan do o sistem a de cotas abarcará 50% das vagas na universida de (USP, 2017).

Poisso, encontrar um aluno negro, nos diversoscursos da USP, ou mesmo um professonegro, pode causar estranhe za en tre br asil eir os e pro m over at itu es discrim inatórias como as que foram relatadas pelos estu dantes ent revistados, que se sent iram isolados e estranhos em um ambiente onde vivenciaram situações que lhes provocaram traumas e constrangimentos.

Estes estudantes levarão para seus países de or igem a pri ncipal lição assiila a no Brasil, a dque aqui negros sofrem restriçõesde direito e de possibili dades de ascensão econômica, pois são, invariavelm ente, vistos como pobres" e, inclusive, subm eti os à vio lência e to da sorte de hum il hações. Nesse aspecto, os depoimentos ressaltaram a estroneidade do p reto b rasileiro, estrange iro em sua próp ria pát ria, além de evidenciaque a assimilação, a integração do imig rante negro à sociedadbrasileira, é também feita pela violência e subordinação.

Deixemos que K.F. conclua:

Bom, eu acho quBrasil precisa crescer muit o a nívehumano, a nível deste reconhecimentodo outro que, muitasvezes, só é inimigo nossoporque a gent e nada sabsobreleQuer dizer,o indivíduo é inimigoporque ainda não ouvimos a história ele. Acho ué fundamental que haja essa troca de experiências, essa roca dhistórias,é preciso que a pessoa se abra de algumaforma para que o outro conte um pouquinho desi, euma vecontada a história da pessoa, aísim...Não seiseé legítimo, se é sensato emitijulgamentos daqilo ue você desconhece,você po de se tornar carrasco de urna pessoa simplesmente porque nada sabe delaAgora, quando você sabe, você tem esse ou tro lado. É muito importante saber o outro lado da história.


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CONSIDERAÇÕES FINAIS


esqu isa com estudantes intercambistas no campus da USem Ribei rão Preto foi desenvolvida pelo Grupo de Estudos Migratórios e Apoio ao Trabalhador Im igrante (GEMTI), sediado na Faculdade de Direito. O grupo dpesquisa e extensão foi cria do em 2012 para desenvo lveanál ises sob rdir eitos dos im igran tes no Brasil, além de presta assessorijudica para trabalhadores imigrantes residentes nesta região do interiopaulista.

Um dos pri meiros pro jetos desenvolvidos foi, justamen te, a criação de um banco de dados com depoimentos prestados por iigran tes sobre sua histó ria de vida. Preten díam os registrar em vídeosna rrativas sob re a vida no paíde or igem, as razões que os levaram a migrae escolher o Brasicomo país de destino, além didentificapossíveis difi cul dades no p rocesso de adm issão, pe rmanência e integ ração à sociedade e merca do de t rabalho bras il eiro. Pretend íam os, com esse banco de dados, subs iiar invest igações dos m ais var iados campos do conhecimento, em razão da trans disci pl in arida e dos esudos m igratórios.

Pesquisas que envo lvem a part icipação de pessoas, posua vez, podem import ar em riscos àque les que concordam em dar sua cont rib uição, e todo cuidado deve seemp reend ido paevi tá-los, minim izá-los. Os ri scos po dem decor rer do p róprio desenvo lvim ento da invest igação: des pertar traumas superados, reviver sentim en os negativos, recordadores sublimadas. Podem tam bém decorrer da divulgação de seus resultados, em razão da exp osição dos part icipant es. É, justamente, o caso destpesquisa. No seu desenvolvimento, deparam o-nos com riscos signif icativos aos part icipan tes, riscos que foram comp letam ente desconsidera dos no in ício da formação do banco de dados.

Quando iniciamos a investigação, não tínhamos a dimensão desses efeitos pelo fato dos estudantes serem iigrantes qualif icaos, especia lm ente benefic iados potratados ou acordos intergovernamentais e interinsti tucionais, além de gozarem da situação regula no Brasil. No entanto, durante a coleta de depoime nt os, a reação emot iva dos participantes ao narrarem experiênc ias negativas e a ident ifi cação do tipo de restrições que lhes foram opostas por órgãos migratórios brasile iros, cuja narrativa assemelhava-sea verdadeiras denúncias -embora os estudantes não tenham se dado con ta disso, na ocasião em que ocorreram - demonstrou a possibilidade da investigação causar danos aos depoentes.

Ao nos depararmos com tais aspectos, problematizamos as questões levantadasnos relatosfornecidos, de forma a aprofundar sua análisee investigasuas razões, e o projeto de pesquisa foi inscrito no sistema CEP-CONEP para que se submetesse à avaliação de um dos Comi tês de Éica da universidade. Na ocasião, entretanto, o projeto ainda estava

sob regênciada Resolução466/201do CONEP, e seu desenvolvimento foobstaculizado pelos seguintes motivos: a formação do banco de dados já estava em curso, o que impossibiltava a análise do CEP; a manifestação da concordância em participar da pesquisa e a autorização do uso de imagem conferida pelos participantesforam feitas em documento que não continha todos os termos exigidos pela resolução não havia, por exemplo, sido redigida em forma de convite, e alguns participantesjá tinham deixado Brasil im possibi lit ando sua convalidação;alémdisso,a gravação da imagem dos depoentes compromet ia a ob rigatoriedade do sigilo sobre sua ident idade.

Enfim, compreendíamos que o desenvolvimento da pesquisa importava em riscos consideráveis aos participantes,pretendíamos contorná-los, mas a invest igaçãoestava inviabil izada pelrigodos critérios estabelecidos pelo sistema CEP-CONEP,voltado, especialmen te, para pesquisas na área médica. Posteriormen te, a publicação da Resolução 510/2016 possibilitou a con tinu idade do projeto, posto que a norma, voltada exclusivamente para pesquisas em ciências sociais, admite a constituição de bancos de dados antesda problematizaçãodo tema da pesquisa;dispensa o termo deconsentimento por escrito, admitindo que seja gravado ou que a anuência seja manifesta por outros meios idôneos, além de possibilitar que os participantesautorizem a quebra do sigilo sobre sua identidade.

Após esses im passes, podemos afirmaque o principal resultado desta pesquisa fo ijustamente, a percepção acerca dos riscosa que os imigrantes estão sujeitos no Brasil, até mesmo no desenvolvimento de uma pesquisaacadêmica, e mesmo quando qualificados e, portanto, "desejáveis"e protegidos por tratados e acordos que os beneficiam.

Constatamos, igualmente, que, mesmo sendo destinatários de direitos, os estudantes intercambistasnão são informados sobre isso pelas autoridadesque teriam obr igação de fazê-lo e seu ingressotem sido obstaculizado,pois nosConsulados e na Pocia Federal lhessonegam informações,inclusive onerando, in justficadamen te, sua vinda ao Brasil. Essa prática reflete e perpetua uma tradição de controle e rejeição em relação aos imigrantes proven ientesde Estados cuja maioria da população não é branca, dificu ltando a materialização de normas m igratórias receptivas,como o Acordo de Residência do Mercosue o Programa Estudante Convênio para Graduaçãoe Pós-Graduação (PEC-G e PEC-PG).

Uma vez no território brasileiro e na universidadede destino, sentem dif iculdade em se integrar, sofrem racismo velado, quando discriminados pelos out ros estudantes, e não se ident ificam com seus colegas, todos brancose de alto poder aquisitivo. Quando negros, o racismo torn a-se explíci to, estão sujeitos a injúrias e a alt o grau de violência física, especialmentpor parte da Polícia Mil ita rque tem permissão para entranos campi da USP e constrangerestudantes que conside ram "suspeitos", episódios que provocaram traumasque foram expressosnas lágrimasvertidasao narraremos episódiosde agressão.

Ao final, ficou evidentque as expectativasgeradas quando escolheram o Brasil pa ra estudar, esperando encontrar um lugar alegre,acolhedor, solidár io e democrático, foram frustradas.A impressão que ficou para estesestudan tesé de um país com universidades racistas, elitistas e excludentes,o que desconstruiu suas ilusões fundadas no mito da "democraciracial" brasileira.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


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“Viver é uma arte. E seu roteiro deve ser escrito pela sabedoria e pelo bom senso”. Dr. José Reginaldo de Melo Paes (medico, poeta, acadêmico alagoano)

  Dr. José Reginaldo de Melo Paes (medico, poeta, acadêmico alagoano) “Viver é uma arte. E seu roteiro deve ser escrito pela sabedoria e p...